10 de jun. de 2007,00:01
DÉCIMA LEVA - ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO


Foto: Wellington de Medeiros / Santorini - Grécia




CICERONEANDO

Um ano de publicações e o DIVERSOS AFINS celebra sua existência. Quando tudo começou, nasceu também a expectativa de fazer do novo lugar um abrigo para a manifestação do pensamento cultural sob variadas formas. Desde então, as vontades das palavras vieram repousar aqui, para compor esse que tenta ser um verdadeiro sarau eletrônico, congregando, sobretudo, as vozes anônimas dos diversos campos da arte. Muitos escritos e expressões saíram de suas masmorras habituais e ousaram mostrar a cara, provando que se é possível afirmar um espaço de publicações capaz de promover a interação entre as gentes e romper certas limitações de um mercado editorial por vezes injusto. Hoje, estamos felizes com as trocas conseguidas, com as novas amizades feitas ao longo desse primeiro tempo de andanças, mesmo sabendo que transitamos pelas vias de um universo eletrônico do quase não-ser. A Décima Leva, além de seus gêneros poéticos, de prosas, cinematográficos, teatrais, musicais, fotográficos e outros mais, é também Leila Lopes, Valéria Freitas, Wellington de Medeiros, Marcos Penalva, Bolívar Landi, Affonso Romano de Sant’Anna, Lita Passos, Luiz Galvão, Antonio Naud Júnior, Héber Sales, João Pedro Roriz, Cássio Amaral, Andréa del Fuego, Solange Firmino, Roberto Joaldo e Maurício Pinheiro. A importância de nosso projeto abarca muito mais gente. Com muita felicidade, agradecemos a todos que colaboraram em todas as Levas, os que leram, os que comentaram, os que acreditam nessa idéia. Os caminhos estão abertos. Que o bem prospere, então!


* Comentários podem ser feitos pelo link EXPRESSARAM AFINIDADES, que se encontra no final desta Leva.



MANTO AZUL

Fabrício Brandão



Desde infante, hábito comum o de colocar joelhos sobre terra. Girando em todas as direções até poder se ver melhor no reflexo do próprio caminho. Mexer os braços, fazendo força para lustrar o perímetro particular de seu pequeno mundinho-cor-de-fantasia-cheirando-a-floral. Exercitar-se com manias de perfeição até rolar cascatas de suores pela fronte. Cansar-se da escravidão de todo um sempre, mesmo sendo dois: mucama e feitor. Ali, bem ao lado, volta-se para os lugares onde nascem e se multiplicam vozes, pois nunca desistiu de pôr mãos sobre os sons.

Fugir da solidão significa acumular historietas de fotografia. Tudo pregado em forma de lembranças pela casa: a primeira ida a um lugar qualquer, um rosto esquecível, encontros risíveis, promessas não cumpridas etc. Acreditava viver num solo fértil de coisas todas, mesmo quando matava a pauladas suas raras chances de sim. Não foram poucas as passagens femininas curiosamente posicionadas num mesmo lugar. Alimentar-se de carne e sonhos humanos para depois jamais entender uma linha sequer. Nem sempre velhas repetições sugerem fracasso. Importante mesmo é deixar as cortinas entreabertas, aromatizar os cômodos e fechar a porta dos fundos para que o vento não assombre esse tempo congelado. Enquanto a visita não chega, repousa as esperas no tecido azul.



Foto: Wellington de Medeiros / Stoke-on-Trent - Inglaterra




JANELA POÉTICA (I)

NO SÍTIO

(para Eliana Salvador)

Neuzamaria Kerner

I

A água que canta
na pedra que escala
o caminho cristalino
para o palco na mata.

O verde que abrange
a folha que fala
de folha em folha
o canto sem falha.

O sopro do vento
no cheiro se espalha
virando semente de vida
que cria vida
a cada segundo.

Eu, nada,
parte de tudo
me duplico para sentir
o sítio irmanado – cada vez mais amplo –
dentro de mim
plenificada.


II

Enfileirados
nos fios
pousam passarinhos
que eletrizam
notas musicais
nas partituras
da mata.


III

Uma concertina
concerta na mata
e se expande em verde
o som.
Dançam sagradamente
as flores
vivem segredamente
os seres
reverenciando o cosmos
que pela concertina
o homem
se concentra
se conserta
enfim.


IV
(Lorenzo, Luigi e Juninho)

No lago
sapos pulam peixes
rebolam minhocas
na boca dos anzóis.
As crianças
brincam bolas
molham águas
batem pés.
Um beija-flor, beija mel,
com suas asas ligeiras aplaudem
de longe
as crianças que riem
felicidade.


V

Na feroz cidade
o homem é fera
o homem é feio
o homem é frio
o homem é arma
brinquedo fa
tal
o homem já-era!

No mato a cruz
não mata a paz
- soleira verde
portal de luz...

E o que era bicho no concreto
no abstrato do mato
finalmente se humaniza




Foto: Wellington de Medeiros / Marselha - França




MINICONTO*

Andréa del Fuego


As cores conhecem nomes variados, o batismo é na bacia da retina. Há cor sem nome, as que não dão valor e volume ao pigmento. Nomes de preto: coca-cola, tabaco. Rosa: palha, champagne. Branco: gelo, neve. Roxo: berinjela, hematoma. Já número não tem sinônimo, um é um, cinco é cinco, não há dois nomes para um. Justo a cor não se acomoda, é volúvel: diga a cor daquele sobrado, e direi sua primitiva direção.

* Miniconto extraído do livro Engano seu.


(Andréa del Fuego, escritora, nasceu em São Paulo, é autora de "Minto enquanto posso", "Nego tudo" e "Engano seu". Integra as antologias "30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira, "Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século", entre outras)




JANELA POÉTICA (II)


RAIZ NO SER

Antonio Naud Júnior


Como sementes atiradas pelo vento,
nascemos numa terra qualquer
que passamos a chamar nossa,
e esquecidos desse esplêndido
acaso de sermos tão só atirados,
julgando que somos dali.
Não somos então de nós próprios,
nem da terra, no fundo, onde,
ao acaso, nascemos.


(Antonio Naud Júnior é baiano, jornalista e autor de O Aprendiz do Amor (1993) e “Suave é o Coração Enamorado (2006)).





Foto: Wellington de Medeiros / Stoke-on-Trent - Inglaterra





OUVIDOS ABERTOS (I)

Por Fabrício Brandão



SARA TAVARES – BALANCÊ


Beleza e raízes encontram-se afinadas em torno do trabalho dessa portuguesa com alma caboverdiana. Com uma grande e suave voz, Sara Tavares cativa de pronto a quem ouve este seu álbum. Balancê traz uma reunião entre a música portuguesa e africana, mesclando os ritmos numa forma muito bem dosada. Além de assinar todas as canções, Sara também participa tocando vários instrumentos, inclusive seu velho e fiel violão. A faixa que leva o nome do disco introduz os ouvidos a um valioso percurso por uma sonoridade bem trabalhada. Grande ponto forte do álbum é a canção Lisboa Kuya, música que nos remete às sensações trazidas pelo movimento efêmero das coisas. Em canções como One Love, Poka Terra, Planeta Sukri e De Nua, as influências dos ritmos africanos, sobretudo os de Cabo Verde, conferem uma identidade própria ao disco. Fazendo parte daquilo que se convencionou chamar de World Music, Sara Tavares nos presenteia com um trabalho magnífico, unindo com perfeição voz, ritmos, sentidos e musicalidade. O caminho para quem adentra tal ambiente tem volta, consiste, sim, num retorno sublime para dar leveza à vida.




Foto: Wellington de Medeiros / Aberystwyth - País de Gales




[Ou]tonalidades

Valéria Freitas


[e há ainda o poeta, esse animal que me habita...atordoado como eu e outros tantos de mim.]

aliciava a sua fome saboreando coisas sem graça como a dor escancarada nos versos alheios. nunca se opunha ao vento e gostava de sussurrar às imensas clareiras de mata alta em volta da casa. era assim o seu retiro: como ele. ali jazia entre livros. com pouca luz, escuro ainda, amanhecia envolto pelas sombras de sua poesia orgulhosa. ignorava qualquer réstia de luz que tentasse invadir aquele platô. tudo o mais, um mundo à parte. sua alma se amontoara pelas estantes e escondera-se em gavetas secretas, cheias das quinquilharias adolescentes, daquela tal puberdade estranha que lhe invadira o espírito muito antes do completo amadurecimento. vivia sonhando com velhos ritos. poesia e transbordamento. mas o tempo foi remodelando essa tolice. desafiava as poucas horas livres entre livros, tentando encontrar um que lhe explicasse - concretamente - o que lhe roubaram ao nascer. perdera os sentidos e o senso do ridículo quando apaixonou-se pela prima vez. releu o poema trágico dedicado à uma mulher mais velha, sem título. ela o sentenciara com Baudelaire, Rilke, Pessoa, Whitman, Keats. Ezra Pound esteve fora de cogitação e ele o odiou até descobrir um poema que era a supremacia da ambigüidade. tudo o que nos pertence ainda está por ser escrito. era o destino, sempre deixando à mostra, sua antipática mania de ler amparado por um mítico sentimento de distância.

enfim, um poema premiado. sua cota surrada de humanidade, de displicente emoção, carregando linhas. nada o incomodava mais que tristeza como cerca viva para um poema. quando a tarde vazou e a noite trouxe-lhe o sossego do chá, sentia-se um espécime medíocre, mas admirado. nada parecia-lhe mais inverossímil quanto ele mesmo: estático diante de um espelho com moldura do século XVIII, iluminado de si mesmo, preparando o velho estoque de sorrisos e dando folga à alma para receber o tal prêmio. uma vez mais, olhou sorrateiro para os livros e livros que nasceram da correria que inventara, da solidão que sempre soube encafifá-lo. além do farto alforje sem tristezas, carregava consigo um certo sentimento desengonçado pelo poema premiado...

“Essa é uma tarde
Branca
Branda
E morna.

Até o vento
Tão lá
Tão cá
[ volúvel – dizem]

Afeiçoa-se
De cada árvore
Ao fim do dia.

Assim é,
a vida.”

e nada a mais.


(Valéria Freitas é colaboradora ativa do Diversos Afins)



JANELA POÉTICA (III)


Foto: Leila Lopes



MARÉS DE MAIO

Leila Lopes


Ouço o vento suado, insinuado em mãos pesadas,
vício de alguma esperança arrasadora e escondida
nos destroços humanos.

Marcha silenciosa
por dentro gritos incessantes.

Alguma salvação há nesse carimbo
bruto, marcado nas areias escuras.
O eterno domínio do sol, a lentidão do tempo
escuro tempo.

Foi desenho tatuado nos braços:
um sábado de vozes inteiras
na realidade vigiada pela imprecisão das marés
imensas de maio.


(Leila Lopes é colaboradora ativa do Diversos Afins)



“SECOND LIFE” E LITERATURA

Affonso Romano de Sant’Anna


Todo mundo tem uma segunda vida. Alguns têm uma terceira, quarta, muitas vidas. Mário de Andrade dizia “sou trezentos, trezentos e tantos”. Mas, em geral, as pessoas se contentam com menos. Não estou falando de vida depois da morte, mas de vida dentro da vida, de vida ao lado da vida. Aliás, estou me referindo a esse fenômeno, na internet, chamado “second life”. Você acessa o referido site e ali recebe instruções de como criar um “avatar”. Antes de virar algo virtual, avatar era uma coisa mais sublime. No pensamento hinduísta, era a encarnação de um ser divino, que podia vir em forma humana ou animal. Mas na internet você não precisa de nenhuma operação transcendental, a coisa é tecnológica, quem sabe lidar com aqueles programas de transcendental importância, cria ali o seu duplo, o seu sósia, a sua sombra e começa a viver peripécias imaginárias.

Esse nome “segunda vida” através da eletrônica, mexeu comigo logo que o vi. É um convite às pessoas para saírem da banalidade de seu cotidiano, para uma outra dimensão. No entanto, pelo que constatei, me pareceu que esse imaginário acionado na internet é algo empobrecido, pois o que ocorre é a troca de uma banalidade por outra. Mas informa o site que já há mais de 6 milhões de pessoas ali criando seus avatares. Converso aqui e ali e percebo que essa vida imponderável estimulada eletronicamente exige também certa dedicação e muito tempo. Acresce o fato de que alguns problemas bem reais e preocupantes começaram a surgir, pois os personagens virtuais começaram a ser vitimados, assaltados, sofrendo estupros, roubos e outras formas de violência.

Quer dizer: não contentes de praticarem essas coisas no cotidiano, certos indivíduos criaram seus avatares, nada divinos, senão malignos, para atormentarem a vida virtual alheia. Isto nos leva a crer que quem é mal na primeira vida, será mal na segunda ou terceira vidas. Com isto, os criadores desses programas vão ter que botar censura, polícia, e, quem sabe, tribunais e cadeias nesses cenários. Tudo isto dentro do mundo virtual, que é uma reprodução rasteira do mundo real.

Vou considerando essas coisas e pensando no papel da arte em nosso imaginário. Arte como autêntica segunda vida. Me lembro de já ter dito que a arte é uma segunda língua. Uma forma de se expressar quando as formas usuais já não nos bastam. A literatura, sobretudo, é assim. Você lê Dom Quixote e solta a fantasia. Lê Robson Crusoé e viaja. Aproxima-se de Alice e cai nas maravilhas do outro lado do espelho. Toma Proust, Kafka, Guimarães Rosa nas mãos e vai conhecendo avatares fascinantes dentro de você mesmo.

Garcia Márquez dizia que o dia em que leu na abertura da “Metamorfose” de Kafka a frase que dizia numa certa manhã Gregory Sansa acordou transformado num estranho inseto, levou um solavanco na alma como se tivesse sido catapultado noutro mundo. E foi mesmo. Instalou-se de vez no realismo mágico, de onde nos devolveria “Cem anos de solidão” e outras fantasmagorias de sua, de nossa segunda vida.

Por um momento, ao tomar conhecimento desse programa na internet, temi pelo futuro da literatura. Pensei, impulsiva e ingenuamente: pronto, esse vai ser o futuro da literatura. Corrigi-me daí a pouco. Não. Esse é o futuro ou o presente da internet. A literatura sem seu futuro próprio. Ela lida com algo mais imponderável, ilimitado e criativo. O que cada um é capaz de desenhar, esboçar, configurar dentro de si diante de uma história ou de um poema é sempre um fascinante milagre. A palavra, na sua aparente indiferença, na sua aparente não visualidade, é um anzol, uma isca, o elemento desencadeador de devaneios, batalhas, interrogações, perplexidades e epifanias.

Que o digam as leitoras e leitores de Clarice, agora que o calendário nos lembra os 30 anos de sua morte. Que nos digam os leitores e leitoras, que na página do livro descerram mais avatares do que supõe a fria tela do computador.

(Affonso Romano de Sant’Anna é colaborador ativo do Diversos Afins)





JANELA POÉTICA (IV)


Foto: Leila Lopes


OFERENDA

(Para Valéria Freitas)

Fabrício Brandão


Os gestos bebem presságios
e não há vagas
para uma prole confusa de desejos.
Passar incólume pela pureza
é ofício de ruminantes horas,
um desvio a seguir.
O movimento do lugar infinito
sabe de si,
flutua na camada invisível de sonhos,
jamais recupera o sabor de ontem.
O vento que se encarrega de mexer marés
sussurra virtudes para quem se permite livre.





O APOLO DE OUTRORA

João Pedro Roriz


A primeira aula de Teatro estava abarrotada de alunas jovens. Havia uma penumbra de mistério e excitação em volta da figura do professor – um jovem ator que participara de uma novela há cinco anos. As meninas, animadas com a possibilidade de conhecer o artista pessoalmente, revelavam seus corpos precocemente bem delineados sob a finura das malhas de ginástica. Todas as conversas e risos escandalosos exaltavam o corpo musculoso, a barba serrada e o olhar sensual do artista.

Quando o professor adentrou a sala de aula, as alunas tiveram uma surpresa: o Apolo de outrora se metamorfoseara em um homem baixo, ligeiramente estrábico, de cabelos compridos e irregulares, calvo no cocuruto e olheiras adornadas pelos óculos fundo-de-garrafa. O físico franzino não conseguia disfarçar uma barriga saliente que sobrepujava sobre as calças largas. A camisa colorida, nem de longe combinava com as sandálias de couro que expunha as unhas negras dos pés. A frustração foi imensa. Aquele homem era uma lembrança remota do ator que trabalhara na produção televisiva. Um silêncio ensurdecedor tomou conta do ambiente. Algumas meninas pegaram o folder de divulgação do curso e analisaram a foto do artista: era o mesmo homem esbelto que as enlouquecera no passado. Aquilo era, no mínimo, uma propaganda enganosa.

Enquanto o professor se preparava para começar a aula, as meninas fofocavam. Havia rumores de que ele sofrera um enfarto após a novela e que, por isso, nunca mais atuara na televisão. Outra aluna preferiu acreditar na tese de que a televisão poderia embelezar qualquer pessoa no mundo. Uma terceira menina suscitou a idéia de que o ator tornara-se um profissional decadente e depressivo por causa do uso de drogas. Esta última hipótese foi a mais aceita entre as adolescentes.

A animação inicial deu lugar a uma esfera de decepção que culminou em um suspiro coletivo. O professor, notando a falta de entusiasmo de suas pupilas, propôs alguns jogos dramáticos. As meninas não demonstraram muito interesse pelas atividades, mas obedeceram às ordens do mestre. No final da aula, o professor apresentou a bibliografia de seu curso. As meninas teriam que ler alguns livros. Os nomes dos autores eram estranhos: Artaud, Stanislavski, Grotowski, Boal e Brecht. As jovens ficaram com medo: teriam que dispor de muito tempo para ler obras tão complexas...

Aproveitando o ensejo, o professor falou da importância do estudo para o ator e elucidou suas alunas sobre o seu passado: contou que há poucos anos, conseguira um papel em uma novela, graças a sua beleza jovial, músculos e o olhar estrábico que, diante das telas, passava certo ar de sensualidade. Seu personagem não tinha muitas falas e se resumia às cenas de luta e sexo. Quando a novela terminou, porém, o ator ficou desempregado e foi sumariamente recusado para outros papéis. Tentou a vida no teatro, mas foi refutado pela classe, que o julgava ignorante. Com raiva, não se deixou abater pela depressão: matriculou-se em uma faculdade de artes dramáticas e, cinco anos depois, graduou-se em história e teoria teatral. Amadurecido e libertado dos grilhões da superficialidade, doravante cativaria alunos a seguir seus passos.

Orgulhoso com sua retórica, o professor encerrou a aula inaugural e se despediu de suas alunas. As meninas pegaram seus pertences e foram embora para suas casas. Nunca mais retornariam para aquele curso de teatro. As mães das adolescentes exigiriam o ressarcimento do dinheiro investido na matrícula. No dia seguinte, as mães das adolescentes exigiram o ressarcimento do dinheiro investido na matrícula. Estavam chocadas, pois, segundo rumores, o professor era drogado e decadente.

(João Pedro Roriz é colaborador ativo do Diversos Afins)





Foto: Wellington de Medeiros / Lisboa - Portugal




JANELA POÉTICA (V)


UM ÍCARO EM QUEDA E UMA LEGIÃO DE ÍCAROS DE MÃO DADAS


GEOMETRIA DE ÍCARO

Solange Firmino


O céu côncavo
abarca o vôo.

O sol oblíquo
derrete a cera
e o sonho.

O mar convexo
recebe
a queda.


ÍCARO RESSURRECTO*

Roberto Joaldo


Nuvens te sustinham todo algodoado
entre almofadinhas brancas hemorroídas
por um filete de sangue que ainda minava
de teu corpo dissociado de uma asa.
Antes rodopiavas em queda
acordado apenas de teu sonho de voar.
Sonho desfeito entre um céu e um mar rarefeitos.
Então te resgatamos e te instalamos aqui
neste palanquinho projetado
sobre o primeiro penhasco deparado.
O que te chamava sempre e sempre mais acima
de alturas que ninguém imagina?
Com uma asinha a menos
teu coração voaria menos altaneiro?
Agora com cera de vaga-lume
por fora colamos a tua asa
e com tutano de chifre de unicórnio
liga e seiva nova injetamos
em tuas articulações combalidas.
E de mãos dadas contigo
ao soprar de novo o vento este
revoaremos tu e eu e toda
a nossa legião celeste.

* Em parceria com Solange Firmino.


Sobre a autora: Solange Firmino é carioca, professora de língua e literatura, participante de diversas antologias poéticas desde a década passada, seja no papel, a exemplo do jornal literário Urbana, seja em sites, como Germina Literatura e Poesia.net. Atualmente mantém a coluna "Mito em Contexto" no portal cultural Blocos online.

Sobre o autor: Roberto Joaldo de Carvalho é baiano, advogado, participante de publicações alternativas no meio universitário na década de 1980 (UFBA) e desde a década seguinte através das Edições Mac (Editora do Museu de Arte Contemporânea de Feira de Santana-BA), nas coleções “Poetas e Contistas Contemporâneos”.




Foto: Wellington de Medeiros / Perouge - França




PEQUENA SABATINA AO ARTISTA

Por Neuzamaria Kerner


Era 1969. No palco do Teatro Vila Velha (Salvador – Ba) duas meninas com os corpos pintados de branco faziam vôos rasantes sobre a platéia, sentadas em balanços. A luz negra incidia sobre as meninas do balanço, deixando que seus corpos brilhassem, enquanto o som de guitarras e bateria, acompanhavam o coro dos artistas no palco: “É barra, Lúcifer!”

O espetáculo? Desembarque dos bichos depois do dilúvio. Participantes? Os ilustres desconhecidos, estranhos, radicais e acintosos: Luiz Dias Galvão, Antonio Carlos de Moraes Pires Moreira, Paulo Roberto de Figueiredo, Bernadete Dinorá de Carvalho Cidade, e, ainda, Pedro Aníbal de Oliveira Gomes, Jorginho, Carlinhos e Lico. À exceção de Bernadete, todos baianos. Foi o início dos Novos Baianos.

Na platéia, não se distinguia bem o que cantavam, mas isso não importava muito, visto que a maioria do pessoal acompanhava o ritmo pulando e gritando. No dia seguinte, um crítico baiano afirmaria: “Se isso for arte, eu me suicido”. Será que ele cometeu suicídio?

É 2007. Numa conversa com o Diversos Afins, Galvão, poeta e mentor do grupo, disse ser um dos inventores dos Novos Baianos. Claro, os outros eram os “rípis” de Salvador: Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor, Baby Consuelo (hoje Baby do Brasil) e Pepeu Gomes.


DAVocê sempre foi considerado o poeta e líder do grupo ainda em Juazeiro. Você se sentia líder mesmo do grupo?

GALVÃO – Eu, embora já tivesse cantando no banheiro lá em Juazeiro e nos ensaios do grupo de Valter Santos, um ex-componente do grupo de João Gilberto, preferi não contar isso e fiquei de poeta e diretor. Só agora que estou cantando a pedido de João Gilberto. Lá (em Juazeiro), eu e o maior poeta da terra, Pedro Raymundo Rodrigues Rego, um arquiteto que era a própria poesia, mas só teve um livro publicado pós-morte, não corríamos da responsa. Dava entrevistas em nome do grupo, a pedido de todos, mas quando o assunto era música, eu ouvia quem sabia mais.

DADepois de seu encontro com Moraes Moreira saiu logo a Preta Pretinha que hoje é uma espécie de hino da Bahia?

GALVÃO – Não. Saíram Ferro na Boneca, Colégio de Aplicação e outras do LP Ferro na Boneca e ainda algumas que nunca foram gravadas. Três Letrinhas nasceu ali e só foi gravada agora por Marisa Monte. Essa música foi feita nos primeiros 12 dias em que eu e Moraes nos conhecemos, mas como éramos mais roqueiros do que qualquer coisa, não a gravamos no primeiro LP e no segundo esquecemos dela. Leilinha, mulher do Dadi (baixista que passou a fazer parte dos Novos Baianos) ouvira nos anos 70, lá no apartamento de Botafogo, e recentemente cantarolou um tantinho para Marisa que se encantou. Leilinha me telefonou e eu não lembrava que tinha aquela música, mas lembrei da letra e Moraes também lembrou, inclusive da música.

DAVocês são considerados até hoje como um grupo revolucionário da MPB. O que você diz sobre isso?

GALVÃO – O que é evolucionário e até mesmo revolucionário nunca deixa de ser, pode ser superado, mas não vejo nada pronto naquele nível. Veja, por exemplo, Os Mutantes, com Zélia Duncan e Arnaldo, bem aquém do que eram, e estão acontecendo mais do que qualquer coisa. Nós fomos revolucionários quando rompemos tabus, jogamos sal no café da mediocridade da própria mídia dos anos 70 e esculhambamos o dinheiro. Mas também fomos evolucionários quando recompomos a boa música brasileira.

DAE seu encontro com Pepeu confirmou essa revolução?

GALVÃO – Sim. Pepeu, com a musicalidade adquirida de sua mãe, no grupo, enriqueceu a modernidade musical através da guitarra tocada com o pique Hendrix, com o dedo de João Gilberto.

DAHoje a divulgação é muito grande, a mídia é mais poderosa, o dinheiro corre mais solto para que se divulgue bem...

GALVÃO – A mídia, "Buche" lá e cá e em qualquer lugar. Nos anos 70 Preta Pretinha ficou 8 meses em primeiro lugar sem pagar um tostão, mas João Araújo, o pai de Cazuza, era o nosso produtor, gostava de música e não havia ainda o domínio da molequeira tocativa.

DARecentemente você fez um show em São Paulo. E aí?

GALVÃO – Foi em 28 e 29 de outubro do ano passado e tava lá Baby, Davi Moraes (filho de Moraes Moreira), Emanuelle Araújo (doméstica na novela Pé na Jaca e está no filme Ó paí ó) e Peu Souza que foram os convidados. O público foi maravilhoso e como o show era inédito e eu o considero novo, diferentão, ficou marcado em algumas pessoas.



JANELA POÉTICA (VI)

ROSÁRIO DE LEMBRANÇAS

Lita Passos


Um rosário de cavalos
Cavalga minha cheia de lua
Suas ferraduras, sapatos de luz,
Cravam na minha alma
Dores estreladas

E meu olhar de angústia
Passeia sobre a paisagem

Branca dos seus pêlos

No meu rosário de cavalos
Rezo estranhas orações
As profanas e as sagradas

Meus cavalos brancos giram
Infinitamente no pescoço
De minha lua cheia
Bebem sepulcrais segredos
E pastam silêncio
Na campina de espelho do tempo.


(Lita Passos diz que sua poesia passeia livre entre as grades sensíveis da palavra. No seu texto reverbera o canto mais delicado da raiz do rosário de lembranças... Sou uma reticência fluindo em versos. Publicou: Mão Cheia (2005), Nosotros (1996), Flores de Fogo (1994), entre outros, inclusive tem publicações em Revistas Literárias)



Foto: Wellington de Medeiros / Perouge - França






DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Fabrício Brandão


O Céu de Suely. Brasil, França, Alemanha, Portugal. 2006.


É curioso como mistérios e segredos, escondidos por trás das faces singulares das pessoas, revelam sentidos tão múltiplos para suas existências. Cada lugar, por mais ermo e anônimo que seja, abriga vozes de mentes e corações que sonham, aprendendo a construir, muitas vezes em silêncio forçado, uma rota ideal de vida, um tão desejado paraíso pessoal, algo que lhes garanta andanças por vias serenas. Busca semelhante é o que acontece em O Céu de Suely, segundo filme do diretor Karim Aïnouz (Madame Satã). Sua protagonista, Hermila, interpretada pela estreante Hermila Guedes, vive um clima denso de retorno a sua pequena Iguatu, cidade natal que deixara, juntamente com um namorado, para viver em São Paulo. Após dois anos na grande cidade, ela volta sozinha e com um filho pequeno, alimentando esperas de que logo poderá rever seu namorado. Mas o cenário é diferente e, entre um anseio e outro de rever seu amor, Hermila encharca seus olhos no longo deserto da espera vã. Sua maior defesa para a desventura de viver é abrigar-se no teto azul que cobre seu mundo pessoal. Acreditando um dia ser possível ter nova vida em outro lugar, Hermila cria um modo inusitado e arriscado de conseguir dinheiro para concretizar seu objetivo.

O Céu de Suely é um filme sensível, cuja poética deixa seus recados bem diluídos nos aparatos cênicos e na interpretação espontânea de seu elenco. Enquanto uma vida luta para afirmar a força de sua singularidade, o espírito indomável do azul perpassa as resistências, fura os bloqueios das limitações humanas, vaga nos espaços impossíveis e vai buscar morada no coração de quem vê teimosamente além do aborrecido.



JANELA POÉTICA (VII)



CAMALEÃO

Héber Sales


a flor da minha pele
cansou-se das horas
as meninas dos meus olhos
exilaram-se no horizonte
desde as plantas dos pés
me desarvoro

trago-me outro
e exalo manhãs.


(Héber Sales é colaborador ativo do Diversos Afins)


Foto: Wellington de Medeiros / Stockholm - Suécia




ONDE ESTÁ A BELEZA...?

Bolívar Landi


Revi dois filmes que sempre despertaram em mim grande impressão. As histórias falam de um tema muito caro ao nosso tempo: o respeito à diferença, fazendo um provocante questionamento sobre a nossa condição humana.

São obras conduzidas por diretores considerados por muitos como estranhos e mórbidos. Talvez por isto mesmo, por fugirem da visão convencional da “normalidade”, sejam tão perspicazes em perceber e narrar as nossas misérias e, surpreendentemente, em revelar a nossa infinita beleza.

O primeiro diretor é o aclamado David Lynch, autor de obras perturbadoras como Veludo Azul, Twin Peaks e A Estrada Perdida. Aqui, no seu comovente O Homem Elefante, faz uma película em preto e branco para contar a história sem cor, inspirada em fatos reais, de John Merrick, um inglês nascido em 1861 com uma patologia que deformou, de forma permanente, 90% do seu corpo. Este é o ponto de partida para mostrar como o homem pode se desnudar do verniz de polimento que o reveste e mostrar toda a sua insanidade e sordidez. O personagem principal é ridicularizado, espancado, tratado como um animal e exibido a todos como uma aberração da natureza. Não são poucos os que procuram se beneficiar de sua miséria, achando-se mais porque o outro tem menos. Até mesmo as boas ações não são desprovidas de interesse e são colocadas em xeque. Contudo, mesmo diante de tanto estranhamento e contradição, o filme nos oferece sentimentos genuínos e pequenos gestos, de extrema beleza, que parecem por si sós redimir toda a nossa espécie.


Cena de O Homem Elefante


O segundo diretor é o soturno Tim Burton, produtor de filmes nos quais o sombrio e as cores vívidas se alternam como uma metáfora do paradoxo e da contradição que habitam a alma humana. No sensível Edward Mãos de Tesoura, Burton inicia uma prolífica parceria com o ator Johnny Depp que rendeu mais três filmes: Ed Wood, A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça e A Noiva Cadáver (animação em que o ator faz a voz do personagem principal). Depp encarna Edward, a criatura de um inventor que morreu antes de acabar a sua obra. No lugar das mãos, ele traz tesouras e vive só em um mundo isolado e triste e, ao mesmo tempo, belo, como se pode ver no deslumbrante jardim que rodeia o local onde mora. Ao ser levado para o convívio com outras pessoas, inicialmente, depara-se com um fascinante mundo de aparências, com pessoas solícitas, compreensivas e amáveis, para mais tarde conhecer, de forma cruel, o que se passa no íntimo dos homens e o interesse que move a maioria das relações.


Cena de Edward Mãos de Tesoura


Em comum os dois filmes trazem como personagem principal seres diferentes, disformes, marcados pelo desrespeito e incompreensão. Os filmes são alegorias da condição humana, desfilando em cada cena o que temos de mais devastador e sublime, fazendo-nos questionar: afinal quem é o monstro? E identificar onde habita a verdadeira beleza.


(Bolívar Landi é colaborador ativo do Diversos Afins)




JANELA POÉTICA (VIII)



METAFÍSICA DOS COIOTES I

Cássio Amaral


Rasgo o trago do imprevisto
que distrai o tempo que passa rápido.
Canto o cântico dos malditos que me cai.
Tudo vaza, tudo explode.
A noite é lenta quando lírios conspiram
contra a sorte perdida.
Lâminas que a incerteza jura fatiar para a salada
de nepotismo barato e regular da gargalhada da noite.
Bebo as estrelas virgens,
Como os meteoros platônicos,
latindo, uivando pra lua prostituta
que cavalga numa nuvem
o sexo santo dos devassos.


(Cássio Amaral é professor de História e Filosofia. Publicou os livros de poesia LUA INSANA SOL DEMENTE (2001) e ESTRELAS CADENTES (2003). Participou das coletâneas SEM NOME (2005) e CORPO E ALMA em Verso e Prosa (2006). Escreve nos blogs Sonnen e Enten katsudatsu. Contato através do e-mail: caodanado567@yahoo.com.br )



Foto: Wellington de Medeiros / Aberystwyth - País de Gales




OUVIDOS ABERTOS (II)

Por Fabrício Brandão



TOCO – OUTRO LUGAR

O paulistano Tomaz Di Cunto, mais conhecido como Toco, mostra sua qualidade e bom gosto neste que é o segundo disco de sua carreira. Aqui, aflora uma Bossa Nova em seus mais puros arranjos e acordes, distante da característica atual de se acoplar elementos eletrônicos para reler o gênero. A faixa Outro Lugar é o grande cartão de visitas desse disco, que prima por uma batida recheada de suavidade e melodias afirmativas da boa MPB. O disco traz a participação do consagrado músico Roberto Menescal, um dos ícones bossanovistas clássicos. Outro nome que abrilhanta o trabalho de Toco é o de Rosalia de Souza (já comentada aqui na Quinta Leva), fazendo um dueto preciso na faixa Bom Motivo. Um belo arranjo passeia por entre Samba Noir, canção que junta batuques, violoncelo e um cortante trompete. Sem dúvida alguma, Toco afina o coro da boa música brasileira, num álbum que revela pesquisa musical e um preciso equilíbrio entre o clássico e o moderno.





JANELA POÉTICA (IX)


ROTA INVISÍVEL

Maurício Pinheiro


O silêncio explode sua urgência em mim.
Meus pés são fonte de escuta.
No coração, todos os indícios do caminho.
Respiro sozinho o ar que envolve as montanhas,
enquanto sigo a comungar
minha solidão com a de outros peregrinos.
Aqui, não somos ilhas,
mas arquipélagos itinerantes de busca.
A busca que dá sentido ao caminho.
Nada habita o momento seguinte,
a felicidade reside na sala de espera.
Abrindo a caixa,
descubro que o presente sempre esteve em mim.

"é preciso sair de casa para que o telefone toque"


(Maurício Pinheiro é ex-agitador cultural, ex-ativista do “grand monde”, ex-espectador do amor. Atualmente, exilado no campo, está em pleno exercício do Braille de si)




Foto: Wellington de Medeiros / Bremen - Alemanha





CLÍCIE

Marcos Penalva


É como se seu cheiro, o cheiro que atribuí inevitavelmente a todos os amores contrariados, me corrompesse agora. E as suaves recordações martirizadas, das tardes quentes, atenuassem as tristes. Uma profunda consternação sepulta-me definitivamente, qual uma terra fria, úmida, poluta, sobre um cadáver passivo e incapaz, com o olhar baço da morte. Vendo-a agora, como eu a vejo, repleta dos lampejos ofuscantes das paixões iniciais, sorridente, com a desenvoltura do adultério resguardado, acrescendo a outros ouvidos novas juras de amor, ainda me surgem, semelhantes a brotos indecisos em um areal, alegrias melancólicas das reminiscências inseparáveis.

O sofá, comprado satisfeitamente, encarrega-se do mero aparo das nádegas nuas de um amante que lhe desconhece a história, que esfrega as costas suadas no tapete o qual ela tanto fez questão de comprar. Sua boca, que tantas ilusões pronunciou, aqui jaz palavras sobre uma glande espasmódica que nunca se acautelou das primeiras dores. Obrigo-me, diante de tudo que me torna ineficaz, sentado neste lado escuro da casa, da existência, a ouvir os sussurros orgíacos da mulher que, apesar de tudo, não consegui abandonar. Tornei-me, não sem relutar, nesta terra infértil, neste vasto escombro de sonhos mortos, de sentimentos estéreis, presenciando cataléptico os arautos do desespero apregoarem seus proclames finais.

- Clície...

Não ouvirá. Não ouvirá uma só palavra das que me restaram. Seu nome, dentre elas, como a melodia solene e fúnebre da desilusão. Clície... Clície... Certamente, diante desta arena, teatro, ou perverso ritual de luto, não lhe ocorra imagem minha que importe, a não ser, talvez, uma estátua jacente e o fel amargo que me transbordara as últimas palavras de desalento. E me apoderarei, como um deus vaidoso, dos últimos graus de loucura, punindo-me, obrigando-me, diante de toda credulidade inabalável que me tornou insensato, a vê-la colear sua nudez loira, a ouvi-la murmurar indiferente o nome de outro homem, a desejá-la como um rodício penitente que me fende a alma e expatria a minha felicidade.

- Clície!

As lembranças me acompanham igual um assecla diligente, um cortejo de detalhes com a retórica cruel do desengano. Naquele dia, a chuva caía rala em ondas por cima da cidade, fosqueando a paisagem urbana e esfriando o tempo. Jamais esquecerei. A tarde esmaecia com um negro incomplacente que progredia rápido sobre as nuvens acinzentadas. Um dia como outro qualquer, como outro dia frio e chuvoso de um inverno qualquer. O menino que entregava o pão acabara de sair e o vento, infiltrado pela porta de vidro entreaberta da sala, agitava as bordas da cortina de brim cru. Fazia planar, fixo à parede salmão, o adorno de sisal entrelaçado.

Encontrei as correspondências sobre a mesa. Pus a pasta e o paletó sobre a cadeira e folguei a gravata. A conta de energia havia chegado, abri-a e destingui uma mancha úmida no tapete, perto da quina do sofá.

Fui comer algo.

Parei alguns segundos na soleira da cozinha. Os quartos estavam escuros como tudo mais no final do corredor. Observei, por instantes mais, a cortina chocar-se contra o vidro da porta. Um barulho abafado. Normalmente, os ruídos das ruas entravam vívidos no apartamento, trazendo-me um sentimento de solidão mundana. Lembrei de Cabiria, de Fellini. Fui possuído por um mal vertiginoso. Entonteci.

- Clície. – chamei, apoiando-me no caixilho.

Algo no fundo do peito, bom, devolveu-me o bem-estar. Recompus-me.

Ela apareceu, de onde eu nem vi, com um sorriso morto, gestos lentos e inseguros, mas solícita. Senti-lhe um cheiro fresco de banho recente, cabelos áureos molhados e a pele branca lavada. Seus olhos, nigérrimos, escondiam a inexatidão passeando pelo meu corpo. Saltou-lhe, do roupão estampado de cetim, uma porção rosada de coxa. Pareceu-me, avançando até o púbis, uma seara nova de centeio, e lá viram plantas adultas, lascivas. Segurou-me a mão cautelosamente.

- Tudo bem? Aconteceu alguma coisa? – disse-me, com um ar de preocupação.
- Não, nada!

Abracei-a.

- Mesmo? Está estranho!

Bem faço em me preocupar. Não pode sentir uma dor, lá estou eu condenando os excessos a caminho da agenda telefônica. Um espirro e corro aos agasalhos, aos comprimidos de Resfrenol. Fiz muito bem em fazer um seguro. Um dia morrerei.

- Ãããã? Estou um pouco cansado, só isso – e fui abrindo a geladeira.

Segurou a porta. Permaneceu olhando o vaso com flores vermelhas artificiais, sobre a peça. Senti-a distraída com a aparência plástica do objeto, perdida em pensamentos. Olhei-a e logo me voltei para o interior da geladeira, do fogão.

Moveu-se até o armário e trouxe uma compota com doce de banana.

- Para a sobremesa – disse-me.
- Que maravilha!

Não demorou e ela restituiu ao nosso mundo uma mulher conhecida, esperada, mas com uma alegria infantil. Contava bobices cotidianas e ria até um outro acontecimento vulgar tomar-lhe a atenção e as brincadeiras. Inicialmente causou-me espanto, entretanto, não demorei a me acostumar, sem me fazer perguntas.

- Fiz um suco de laranja pra você – e desencravou, do fundo da última prateleira da geladeira, uma jarra de vidro com um líquido encorpado.
- Você está com febre? Está se sentindo bem? – perguntei.
-
Claro que não! Estou bem!
- Você parece estar suando.
- É que eu estava no fogão antes de você chegar.
- Ah!

Tomei meio copo do suco.

O mundo passou-me fugidio. Corria atrás da minha mãe ao redor da grande mesa da sala de jantar, na nossa casa no interior. Era um dia claro e bonito de verão. As flores antes coloridas, fora da cidade, despetalavam suas corolas desidratadas sobre a ocra das estradas. E tudo se esfacelava imperdoavelmente sob as chuvas torrenciais de junho, no dia em que fiz nove anos. Disse-me séria, neste dia, que meu pai havia viajado para um lugar muito distante e não chegaria a tempo. No nosso pequeno quintal, ela me pediu que plantasse um girassol para todos os quais amasse. Vivíamos numa casa muito grande, sem portas, com duas únicas janelas, de onde eu podia ver toda a cidade. Disseram-me, quando eu era ainda muito pequeno, que no sótão, onde estava a outra janela, havia assombração. Temia que lá minha mãe fosse para sempre, então, um dia entrei e não saí nunca mais.


(Marcos Penalva é um graduando em Comunicação Social, um contista centrípeto, um poeta frustrado, um narrador inquieto, um enredo nada fácil e um personagem sempre esperando plot point (catarse) nos palcos da vida)



Foto: Wellington de Medeiros / Campina Grande - Brasil



* O designer paraibano Wellington de Medeiros, vivendo atualmente na Inglaterra, é um apaixonado pela pintura e pela representação imagética em geral. O acaso o fez descobrir a fotografia e agora, sedento desta linguagem, registra com suas lentes pessoas e ambientes, sobretudo imagens de contemplação e solidão. Aposta na intuição e prefere captar o inesperado.

 
publicado por Fabrício Brandão
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