20 de dez. de 2007,16:00
DÉCIMA SEXTA LEVA

Foto: Sérgio Luiz Pereira da Silva







CICERONEANDO


O ano que agora se esgota é apenas a forma convencional que encontramos de delimitar as ações e guardá-las segundo as ordens desse imprevisível senhor chamado tempo. Dentro dele, estão contidas partes valiosas dos caminhos trilhados em torno da cultura. Acreditando na inexistência absoluta de regras fixas, apostamos na vastidão de perspectivas que são frutos sinceros de nossas humanidades. O maior desafio para os criadores talvez não seja apenas o de transformar aquilo que já existe, mas saber chamar a atenção para o modo como percebemos a nós mesmos. Cada texto ou expressão ganha corpo quando podemos nos sentir incluídos em suas entrelinhas. Por tudo isso, chegamos felizes a mais uma Leva onde a ciranda das palavras destila outros sentimentos. Celebramos a poesia nos versos de Carlos Henrique Leiros, Líria Porto, Oswaldo Antônio Begiato, Romério Rômulo e Fabio Weintraub. Nas imagens captadas pelo fotógrafo Sérgio Luiz Pereira da Silva, seguimos os rastros do humano em suas delicadas nuances. O escritor André de Leones nos incita à leitura no APERITIVO DA PALAVRA. Os olhares sensíveis de Cláudia Rangel nos ajudam a percorrer alguns dos intensos signos de “A Via Láctea”, filme de Lina Chamie. Nossas vias musicais abrem os ouvidos para o talento de Isabela Moraes e Celso Fonseca. A prosa de Yuri Assis nos atira aos intervalos comprimidos de uma densa espera. Essas e outras tantas expressões consolidam o nosso presente. Somos gratos a todos aqueles que, durante o ano de 2007, leram, colaboraram e deitaram seus olhares sobre nossas linhas. Sejam sempre muito bem-vindos por aqui! Vivas à vida!


*Comentários podem ser feitos através do link EXPRESSARAM AFINIDADES no final da Leva.







O QUE ESCORRE

Fabrício Brandão

Nunca chorou sozinha num banheiro sujo
Nem nunca quis ver a face de Deus

Cazuza

Ela se olhou bem fundo no espelho turvo e quadriculado de azulejos em harmonia. “Sou tão suja”, pensou perdidamente ainda tentando decidir se apertaria o botão do adeus às misérias. Bem que poderia imaginar que o mundo era maior do que qualquer sandália apertada nos pés calejados. E tudo isso era rito de se fazer o caminho de volta, sempre acreditando em resgates da bondade alheia. “Mas os outros não existem e talvez nunca existiram”, lutava ela contra a tirania de sua própria mente. Dos anos todos, ainda ficou essa esperança insistente de se enternecer pelos berros de um bebê redentor. A pequena criança era o legado da fuga pelos arredores de um universo perdido. Então, podia esquecer prontamente a irritação que lhe causava pensar nas contas, nos barulhos da rua ao lado, e o pior, pensar na falta de alguém que comesse com vontade seu modesto banquete de emoções mornas. “Vida de merda”, bradava ela silenciosamente enquanto mirava o fundo de um pequeno poço afogado em tocos de cigarro. E fica essa coisa toda de remoer uma ciranda de desejos sem rosto. Alguém a deixara falando sozinha até hoje, pois estes tempos são difíceis e nunca se entra em lugar algum quando as escutas do outro não podem ser apresentadas. A mais terrível das insônias é saber-se acordado sem poder alimentar desvarios vestidos do que o mundinho de fora chama por sonhos. “Quantas outras idades terei quando sair pela pequena porta?”, arrematava em vontades de escape. Lavou a cara, as mãos e depois partiu pra dentro dos claros do novo dia. Como de costume, deixou pelo chão imundo aqueles rabiscos espalhados no único lugar onde sua voz conseguia gritar. E gritava sem ninguém:

De buracos
Olho
Bem fundo
Um
Espelho de águas
Imersas em sangue próprio

[Tudo isso, claro, sem lavar os próprios pés.]







Foto: Sérgio Luiz Pereira da Silva






JANELA POÉTICA (I)


o naufrágio da intenção

Carlos Henrique Leiros


entre a palavra dita e o silêncio,
existe o naufrágio da intenção.
aquilo que nos corrói e empurra porta afora
.

sem cicerones e sem rota,
como nuvens em fuga.
.

não há poema que não se distenda
até o desmaio, espichando suas pernas de agrippa,
na última busca por luz.
.

mas eis que o lume se apaga,
caprichosamente, sem que sejam ouvidos
os nossos arranhões à porta.


(Carlos Henrique Leiros é potiguar de Natal/RN, onde, há mais ou menos duas décadas, iniciou-se nas letras, publicando artigos analíticos sobre Literatura, Música e Cinema na imprensa local. Atualmente, dedica-se exclusivamente à Poesia, uma paixão que considera tardia. Gosta de música, livros, silêncio, papéis de gramatura especial e de chás. Planeja para 2008 a publicação do seu primeiro livro de poesias, denominado provisoriamente de A Canção Submissa)








Foto: Sérgio Luiz Pereira da Silva







A QUE VENDIA RECORDAÇÕES

Neuzamaria Kerner


Agora deu de vender as coisas. Os pertences... e a casa amanhecia cada vez mais silenciosa como que consentindo no esvaziamento. À noite maquinava o que partiria no próximo lote de amanhecer. Não sei por que vendia. Na verdade parecia planejar algo pelo bem de alguma coisa mais importante, mas não tenho certeza do que digo.

Um dia era uma peça de madeira, talhada à mão, que por mais de 50 anos guardara pratos copos tigelas taças. Assim me informou quase sussurrando. No outro a vítima poderia ser o sofá, companheiro de duas gordas poltronas que a vida inteira acomodaram bundas e até pés. Se tivesse apostado, teria ganhado. Carreguei o grupo da sala de visitas deixando o espaço crescido.

É... agora deu mesmo de vender as coisas impulsivamente. Ou já seria uma compulsão se avizinhando na mente de quem queria esquecer? Vendia. Só sei. Todos os dias o telefone chamava a minha caminhonete que já estava sabendo o caminho. Sobre preço discutíamos pouco: ela dizia um, eu dizia meio e tudo ficava pelo meio. Até que ainda era aprumada e algumas vezes arrisquei um olho. A cintura fina entre as coxas e os peitos. A cada dia que ela imaginava o que me venderia no dia seguinte eu imaginava o que olharia nela. Percebeu a danada e numa das vezes segurou o meu olhar de tal forma que esquentei por dentro e minha pele cuspiu fogo. Temi.

Não, não venderia o corpo e pela cara já me deu a saber do preservamento decidido. Não sou letrado nas psicologias, mas ali tinha coisa. Ah, se tinha! Entrou no meu pensamento e me mandou acabar com as curiosidades, disse assim de supetão me deixando abestado: penas muitas guardam meu corpo... quando eu levantar os braços, meu vôo para o futuro será consumado. Dizer que entendi direito é mentir e quando ia abrir a boca, me cortou antes do movimento e mostrou na saia formando concha montes de copinhos de vidro trabalhados por um vidraceiro. Foram potinhos de papinhas da Nestlé. Os meninos gostavam. Cresci os olhos e ela fechou a saia. Falou baixo, mas escutei: estes ainda não têm tempo contado.

Por que dera de vender as coisas? Perguntei um dia tentando parecer indiferente. Sua resposta foi pegar uma foto p & b duma criança com olhos grandes e brilhantes, sentada no chão assoalhado, vestindo apenas calçola. Sou eu há mais de meio século. Por que dera de vender coisas? Insisti.

Me olhou de cima pra baixo, superior. Eu me apequenei. A danada falava forte e direito: ignorante! Quem disse que vendo coisas? Me desembaraço de recordações. Se você acha que eu vendo alguma coisa, então é isso.

Chamei o ajudante, tiramos o freezer da cozinha, amarramos na caminhonete. Entreguei a ela dez notas de dez e nunca mais atendi a seus chamados. Vou lá eu querer continuar olhando alguém oco de lembranças?






Foto: Sérgio Luiz Pereira da Silva









JANELA POÉTICA (II)



SEXAGENÁRIOS

Líria Porto



quem sabe eu chorasse
um mar oceano

dele retirasse
o sal desses anos

temperasse a velhice
com mais parcimônia

afinal quem não sonha
com final feliz?


(Líria Porto é mineira de Araguari e mora em Belo Horizonte)






OUVIDOS ABERTOS (I)

Por Fabrício Brandão



ISABELA MORAES – BANDEIRA EM MARTE



Engana-se quem pensa que tudo já foi visto e até mesmo sentido. Mora no olhar de cada um a perspectiva de se desenhar percepções de todos os cantos da existência. De fato, as palavras que saltam por entre sentimentos e seus respectivos signos andam por aí, à cata de quem pretenda se lançar ao desafio de construir outras paisagens. Cabe, portanto, a cada um assumir a sua identidade, mostrar a própria face e assumir para o que veio. Esse tipo de afirmação é a que pode ser encontrada no trabalho da pernambucana Isabela Moraes. Dona de uma voz que assinala personalidade, a cantora e também compositora atira suas expressões aos ouvidos de quem se permita sentir um ambiente musical com uma cara muito bem definida. Bandeira em Marte, seu primeiro disco, traz uma característica fundamental para quem deseja trilhar uma estrada autêntica e pessoal, a de ser um álbum predominantemente autoral, com letras e arranjos delineados pela própria artista.

A voz firme e precisa de Isabela atravessa canções que mesclam sentimentos das relações e temas ligados a questionamentos sociais e existenciais. A faixa A cura, por exemplo, é marca bem clara de algumas indagações que projetam a nossa vida como um verdadeiro palco de mistérios. Intensidade é a maior virtude da interpretação de Preta, um dos pontos altos do disco. Bandeira em Marte, gravado ao vivo, além de passear pelas vias essenciais da MPB, prova que a artista sabe visitar com suavidade gêneros como o samba e o frevo. Em seu modo de compor, a cantora deixa nítidas as influências trazidas pela poesia, seja em versos românticos ou nas linhas que traçam uma leitura mais crítica de aspectos de nossa sociedade, como é o caso de Preconceito lingüístico, música cuja letra evoca virtudes e ciladas embutidas nos usos das palavras. Habituada a compor desde os 12 anos de idade, Isabela Moraes não constrói suas bases sem que os apelos intuitivos e sensíveis de seu olhar estejam presentes. Ao que tudo indica, os caminhos prometem ser longos para quem sabe fazer ecoar sua expressão.









JANELA POÉTICA (III)





MALIGNO*

Fábio Weintraub


marcaram a extração do rosto

Tirando o falso incisivo
os dentes na gaze não sangram mais

Moscas brotam do ar
e voam baixo
mareadas

Por trás da lente rebrilha
o
olho do taxidermista

Tudo em breve será mais simples:
guardaremos os
sapatos
cobriremos os espelhos
e o quisto crescerá no vazio


* Poema integrante do recém-lançado Baque (Editora 34)



(Fabio Weintraub é paulista e psicólogo com formação em psicanálise. Publicou os livros de poemas Sistema de erros (1996), vencedor do prêmio Nascente em 1994, e Novo endereço (2002), que re­ce­beu os prêmios Cidade de Juiz de Fora, em 2001, e Casa de las Américas, em 2003. Trabalha como editor em São Paulo)






DROPS DA SÉTIMA ARTE


A Via Láctea. Brasil. 2007.



DELICADAS EMOÇÕES E NERVOS EXPOSTOS

Por Cláudia Rangel

“Solidão é quando a gente não tem com quem falar que está sozinho”
(fala do personagem Júlia)


A Via Láctea, de Lina Chamie, é um dos filmes mais intensos e perturbadores que vi ultimamente. (Pausa. Branco). Intenso e perturbador são palavras muito enfáticas e contundentes, que mais ou menos encerram a possibilidade de reflexão racional sobre o filme. Mas é uma reflexão racional o que quero fazer? O filme não me atingiu racionalmente. Ele me atingiu fisicamente: expôs meu oco, o buraco mal disfarçado da minha confusão emocional.

Vesti A Via Láctea por fora e por dentro e sai do cinema repleta das estrelas mortas que ainda teimam em brilhar nesse céu. Um céu que não começa nas nuvens, mas na epiderme da grama mais rasteira, na nossa epiderme exposta à poesia do caos humano, do caos urbano, do caos do amor, do caldo mal cozido de nossa dor de ser humano e amar e desamar, de pensar e se confundir, de lembrar e ser lembrado. E de esquecer. A Via Láctea poderia ser mais uma história de amor e desencontro. Mas Lina Chamie optou pela via mais difícil e bela: a da poesia. E transformou seu filme numa obra de arte, no sentido mais amplo e contemporâneo do termo.

Para quem gosta de se ater ao fio da história, a de A Via Láctea é assim: Heitor, não por acaso um professor de literatura, e Júlia, duble de atriz e veterinária, se encontram e desencontram nos caminhos da grande cidade de São Paulo. Uma discussão violenta ao telefone faz com que Heitor saia de casa para ir ao encontro de Júlia. A história se resume na busca de Heitor por Júlia. E nessa busca ocorre também o encontro de Heitor com ele mesmo. São as lembranças de Heitor que nos contam sobre o casal e seu amor, tendo como pano de fundo e interlocutores a cidade e o trajeto entre o apartamento de Heitor e a casa de Júlia.

Mais que o cenário desse amor, a cidade de São Paulo é um personagem importante na construção do filme. São suas vias e seus remansos que determinam a interação entre os personagens. É a cidade que serve de fio condutor para essa história construída pelas lembranças e pela imaginação de Heitor. Uma história que pode mudar a qualquer hora, pois não há separação entre o que é a lembrança real, o sentimento ou a imaginação do apaixonado enciumado interpretado por um maravilhoso e maduro Marco Ricca (também produtor do filme).

A Júlia de Alice Braga (a Angélica de Cidade de Deus) a princípio parece não existir. Nós a vemos apenas com o olhar de Heitor, idealizada pelo amor dele. Ela só aparece como Júlia no fim do filme. E aí percebemos a grandeza da atriz Alice Braga, que sutilmente construiu o personagem mítico que Heitor ama e o personagem real Júlia.

Toda a narrativa é construída com a matéria bruta da mente de Heitor e amalgamada com a poesia de Carlos Drummond de Andrade e Mário Chamie, entre outros. E também com a música de Gil, Satie e Mozart, misturadas à clássica abertura de desenho animado, o burburinho da cidade e a participação luxuosa e dionisíaca do Grupo Oficina. Tudo isso sobreposto às imagens poéticas da fotografia de Kátia Coelho e a primorosa direção de arte de Mara Abreu formam um palimpsesto de sentidos às vezes difícil de decifrar. Mas que toca na alma da gente com força. Um material delicado e denso que Lina Chamie e a equipe dominam com absoluta precisão e delicadeza. Um roteiro bem construído que a fotografia, o som, a direção e a atuação souberam interpretar com a maestria de quem trabalha com o coração desperto.


(Fotógrafa, Cláudia Rangel vez por outra brinca de criar imagens com palavras)







Foto: Sérgio Luiz Pereira da Silva







JANELA POÉTICA (IV)


RELENTO

Oswaldo Antônio Begiato


Não tens nada
A te prender na terra;
Não tens raízes
Na sola de teus pés.

Não tens nada
A te prender no céu;
Não tens juízes
Na cola de tuas fés.

Tudo o que te prende na vida
É a esperança que na pele arde,
Como a uma profunda e vã ferida:
Renascer sã no final da tarde.



(Minha terra viu o passar, os pincéis e as cores de Tarsila do Amaral, que um dia encontrou em seu caminho um Oswald. A mim acresceram um artigo masculino no final, e um outro, acentuaram com circunflexo pra determinar meu centro: Oswaldo Antônio Begiato. Quando descobri isso, fiz das palavras minha terra natal.)





APERITIVO DA PALAVRA

Por André de Leones



OS RESTOS DE QUALQUER COISA QUE DESCONHECEMOS (1)

1.

O Dia Mastroianni
(Agir), romance de João Paulo Cuenca, brinda aos que foram e aos que voltaram, mas eu já escrevi isso em algum lugar. Metanarrativo ao cubo (?), o livro pode ser caracterizado como “kafkiano-lisérgico” (??). É protagonizado por Pedro Cassavas e Tomás Anselmo, os quais preferem ser trabalhados a trabalhar e passam o dia (a vida?) flanando por aí, entre porres, mulheres, mordomos seviciadores e um velho escritor com nome de personagem de HQ (Mxyzptlk). Cuenca usa e abusa dos lugares-comuns e clichês, numa postura, se me permitem, tarantinesca. Ele sabe que: “Quando terminarmos de ler e contar a história (...), também desapareceremos”. Constrói um romance-limite que brinca com a busca cega por originalidade que, muitas vezes, sacrifica boas premissas. Paradoxalmente, é um livro que, pela maneira como abraça tantos clichês, soa insuspeitamente original. Em outras palavras, o livro é tão bacana porque, ao mesmo tempo em que assume a esterilidade que (mui) supostamente aflige os jovens autores, usa isso como “desculpa” para processar e reprocessar clichês, tornando-se, afinal, algo instigante, divertido e perturbador. Uma bela de uma cama-de-gato, em suma.

2.

A “Geração 00” está por aí, correndo sobre os restos de qualquer coisa que a maior parte das pessoas ignora ou desconhece. “Mais enredo!”, pedem. “Menos experimentação!”, exigem. “Legibilidade!”, imploram. “Não é por acaso que ninguém lê os livros de vocês!”, cospem. “A literatura está em baixa porque tudo o que escrevem é uma merda!”, diagnosticam. “Vocês são todos uns babacas!”, sentenciam. Porra, nós não temos culpa se o mundo degringolou geral e numa velocidade tremenda. Logo, só podemos mesmo tratar essa realidade obtusa como um playground freqüentado por maníacos, lesados, desligados, zumbis e extraterrestres. Mais: nenhum escritor que se preze vai nivelar o próprio trabalho por baixo a fim de “angariar mais leitores”. Mais, mais: escritores escrevem como podem, não como querem. Não existe, nos escritores, uma chave na nuca com as opções “cult” e “comercial”.

3.

A vida não vai melhorar.



(André de Leones: goiano, 1980. Autor do romance "Hoje está um dia morto" (Record). Exilado no litoral paranaense. Não é formado em nada. Só escreve)








Foto: Sérgio Luiz Pereira da Silva








JANELA POÉTICA (V)

Valéria Freitas


1.
sobre calafrios


enquanto ela entendia que o frio espalhando-se pelo corpo
não significava nenhuma coisa de morte
compreendeu que a solidão é mesmo perversa
e atua calada
pelas costas
entre lençóis floridos
bafejando memórias a qualquer um travesseiro
e hora e outra
sussurrando

que seria de ti
morrer sem saber
sobre o que fala saudade?

2.
sob os pequenos traços de uma tal senhora resiliência...

quando você lamentou nossa história
não me permitiu jejuar
mas estampou pela casa inteira
que tudo era culpa de um seu destino.

esqueceu pra nunca mais lembrar
dos acasos
das santas inconfidências
que nos fizeram migrar livros,
roupas, penduricalhos e manias
para um mesmo país
numa mesma cidade
cuja intensa rua
manteve acesa noite-noite
aquela nossa janela.
e agora que estou em jejum
me diz aqui,
para onde esse "um destino" te guiará?

porque eu,
eu não vou.
eu continuo.

eu acredito em circunstâncias
e n'alguma coisa sobre certa sorte cigana.







Foto: Sérgio Luiz Pereira da Silva







EPITÁFIO

Yuri Assis


Na minha tranqüilidade tranqüila, esperava a oportunidade certa de chegar ao outro lado da rua. Pois então, meu bem, lembrei-me de você. Enquanto tragado pela escuridão do universo, lembrei-me de você.

É que veio um carro. Dentre tantas possibilidades, dentre tantas incertezas, quis Deus que viesse um carro. Deus, meu amor, não é injusto. Deus é a obrigação de alargar minhas margens íntimas.

Era escuro. Era um carro que anunciava o meu destino no aspecto morto de sua cor. Primeiramente, vi um obstáculo ao meu desejo de chegar ao outro lado da rua. O carro foi chegando mais perto, tudo começou a entortar. Pensei que seria assaltado. Justo naquele dia em que eu nada trazia nas mãos, uma necessidade cruzava meu caminho... Mas, subitamente, a rua tornara-se tão torta, que dois planos, o do asfalto e da minha calçada-do-meio, se entrelaçaram: o carro subia na calçada.

Ah, meu amor, lembrei-me de você. Lembrei-me de nossa última briga. Você estava atrasado para seu compromisso, eu estava preocupado com a minha reunião no escritório. Estávamos submergindo no meio de um turbilhão, só porque queríamos garantir mais tempo e mais espaço – e mesmo o pequeno segundo e o cubículo nosso não soubemos aproveitar.

Lembrei-me também que eu tinha esquecido nossos ternos na lavanderia e que no dia seguinte havia o baile de formatura da sua tia Cleonice, ela estava se formando em Letras. Era como se fosse uma conquista nossa.

Segundo o machismo do marido, mulher tinha que cuidar da casa. Mas ele, após beber, espancara Cleonice. Você foi até a casa dela, buscar a chave de nossa casa esquecida lá e ouvira os gritos.

Levamo-na à delegacia, fez-se o boletim de ocorrência. Depois disso, ela aceitou que a abrigássemos em nossa casa. Três anos depois, após completar os estudos interrompidos, ela fez o vestibular para Letras. Ansiamos junto com ela o ingresso na faculdade. Agora, vê-la professora de Literatura é gratificante.

Ah, meu amor, é amanhã a formatura. Mas esse carro ingrato está cada vez mais próximo de mim e eu ainda não consegui esboçar uma reação. Será que Deus me privaria de gozar da vitória de tia Cleonice, que também era nossa vitória? Tantas lutas, e é este o prêmio, o metal de um carro escuro?

Tantas lutas... Lembra-se da nossa luta conjunta, por sermos diferentes? Lembra que minha mãe queria que eu me casasse com uma mulher e que eu continuasse a família? Seu pai já tentou me matar, mas eu consigo entender. Certas coisas não se escolhem, não é? Já dizia uma escritora famosa que “numa terra de morenos, ser ruivo é uma revolta involuntária”.

Ah, meu amor. Que espaço é esse que ainda existe entre eu e o carro que tenta me matar? Sempre odiei esperar por momentos ruins. Mas antes, meu amor, eu lembrei uma última coisa, a mais importante.

Dizem que cuidar dos outros é se eternizar. Lembro agora porque nos unimos, porque havíamos decidido morar juntos: queríamos uma filha. Fomos ao orfanato, e naquele dia nosso caminho pareceu coroado de flores. Adotamos uma menina, e dois meses depois nossa Débora estava no berço. Hoje, ela tem 5 anos e daqui a um mês é a sua formatura de alfabetização. Mas será que até esse gozo me será privado?

Ainda persiste um espaço inacreditável entre eu e o metal de morte. Agora fechei os olhos e não sei se isso é covardia ou mais coragem. O carro é frio, meu amor, e eu estou me sentindo confortavelmente morno pelo calor de seu corpo. O carro é morte, meu amor – e estou me lembrando do que tem vida na minha vida. Ou do que fez valer a pena essa trajetória, selada pela batida de um carro.

O que vai acontecer, meu benzinho? Tenho medo, segura minha mão? Se eu morrer mesmo, peça perdão a tia Cleonice por não termos ido à formatura dela – Deus sabe o quanto quis estar lá. Se eu morrer mesmo, diga a Debinha, que eu não sei se o mundo é bom, mas que ficou melhor depois que ela chegou. Se eu morrer mesmo, meu amor, continue nossos sonhos. Se eu morrer mesmo, sinta-se beijado – sinta o jardim que construímos ao longo desses anos difíceis.

Adeus, talvez. (Qual o buraco que ainda se preserva entre eu e o carro que já subiu na calçada? Esse metal voraz).



(Yuri Assis costuma escrever poemas, mas está aproveitando as horas vagas pra se aventurar na prosa. E vem descobrindo interseções entre um ser humano e outro – e entre si mesmo e si mesmo – através dessa nova viagem)







Foto: Sérgio Luiz Pereira da Silva








JANELA POÉTICA (VI)


COISAS PARA FAZER COM PREGUIÇA

Héber Sales


escorregar o ânimo num cago de chuva
sentir desejo de planta por travesseiros
celebrar a paz das vassouras com as teias
vegetar as idéias no pó assentado
esquecer do amarelo gritando lá fora
embalar um mofo com pão dormido
deixar para o limo o amansar as facas
ignorar (por esta manhã) o desmantelo do tempo








Foto: Sérgio Luiz Pereira da Silva











CERTAS INCERTEZAS

Por Affonso Romano de Sant' Anna


Leio que o português José Croca acaba de ganhar o Prêmio Galileu de Física por apresentar argumentos teóricos e práticos que contestam o chamado "princípio da incerteza" de Heisemberg.

Não sou eu, e muito menos nos limites de uma crônica, quem vai lhes explicar o que é tal "princípio". O fato é que isto está ligado à física quântica fundada em 1900 por Max Planck. Depois vieram Einstein, Bohr, Heisemberg e muitos outros. E estabeleceu-se uma polêmica sobre o universo e o mundo subatômico. E da física passou-se à metafísica.

Ou seja: das especulações científicas sobre a "incerteza", o "acaso", a "probabilidade" e a "relatividade" passou-se para se concluir que a "incerteza" é que regula a história, a arte e a vida. Aí começou-se a agregar isto ao pensamento de Nietzsche que, no final do século XX, demoliu algumas "certezas" filosóficas. E Nietzsche passou a ser uma espécie de filósofo quântico, que está na base do pensamento de Foucault, Derridá, Deleuze, Barthes e outros sofistas dos anos 60 que reafirmaram que não existe “verdade", que tudo são aparências, tudo é interpretação e deslizamento de sentidos. A filosofia e a teoria da literatura viraram algo quântico, um apêndice ou vulgata da física decretando que "tudo é relativo".

Constituiu-se no século XX uma ideologia da incerteza. O certo, ou seja, o politicamente correto, era o incerto. Assim como em cada língua as palavras, por exemplo, "cão" ou "árvore”, são grafadas de formas diversas, passou-se a admitir que a verdade é arbitrária, deslizante, insituável. Adeus universo de causa e efeito. Então, Newton - o gênio que aglutinou todo o saber do século XVIII, passou a ser um tolo. Aristóteles, então, um primata. Até Einstein que não curtia totalmente a idéia da "incerteza" foi depreciado, só porque argumentou que Deus não joga dados com o universo.

O cara quente era Nietsche-Ecce Homo.

Realmente a física quântica dizia coisas desnorteantes: "um elétron, ao mudar de órbita, desaparecia de uma e reaparecia instantaneamente na outra sem percorrer espaço intermediário". Era o famoso "salto quântico". Com isto, começamos a examinar o teatro de Beckett, a prosa de Joyce, a incertezas existenciais dos personagens, a pintura abstrata, a arte do caos. O mundo era mesmo um teatro do absurdo. Um jogo de dados gratuito como queria Mallarmé.

Já não se tratava daquilo que ocorrera ao tempo de Ptolomeu e Copérnico em que se discutia qual era o centro do universo. Agora a ciência, as artes e a filosofia vinham dizer que não havia centro algum. Convenhamos que isto faz qualquer um perder o norte.

A geração que se formou seduzida pelas teorias de Nietzsche, Foucault, Derridá e outros menores, se apaixonou tanto pela incerteza, que criou um novo credo, a certeza da incerteza. Isto virou uma religião, a religião de paradoxos insolúveis e de oxímoros paralisantes. O vazio pleno. O silêncio ruidoso. A indecidibilidade do dizer.

Essa descoberta do físico português dá o que pensar. Pode ser mais uma passo na revisão do século XX, época em que tínhamos tantas incertezas certas. Esse José Croca alega que o pensamento de Heisemberg impunha uma barreira ao conhecimento. "Mostrei que tal barreira não existe. Ou que podemos ir muito além dela. E que é possível explicar fenômenos tidos com misteriosos e inexplicáveis em termos causais. Não há fenômenos misteriosos em Ciência".

Já nos anos 70 a Teoria do Caos demonstrou que o caos não é caótico, que tem uma ordem. Se com a ciência conseguirmos alguns avanços lógicos, por contaminação, talvez o nosso cotidiano se torne menos incerto; e tanto a metafísica, tanto quanto a física, deixarão de ser, como dizia Borges, um ramo da literatura fantástica.

Quem viver, certamente verá. Ou não.



(Affonso Romano de Sant’Anna é colaborador ativo da Diversos Afins)





Foto: Sérgio Luiz Pereira da Silva









JANELA POÉTICA (VII)

Romério Rômulo


há um tempo.
mesmo das infidelidades há um tempo.
o olho do campo regurgita os pastos.

há um tempo.
mesmo da permanência havida há um tempo.
os bruscos lençóis resvalam cores
amplas de medo.

há um tempo.
mesmo de braços contidos há um tempo.
sem mais ver,
bruscos rugidos vão prestar tempestades.

quantas noites os tumultos violam
de manter falências e medos?
quantas gargantas se contêm de dizer?

há um tempo. claro e justo tempo.

(texto de revolução contida)



(Romério Rômulo é professor de economia política da Universidade Federal de Ouro Preto e tem nove livros de poesia publicados, sendo o último, "Matéria Bruta” (Editora Altana, SP, 2006))





OUVIDOS ABERTOS (II)

Por Fabrício Brandão


CELSO FONSECA – FERIADO



Desde a conversa que tivemos com Celso Fonseca, em nossa Nona Leva, abriu-se uma expectativa em torno de seu novo trabalho, Feriado, nome já revelado pelo próprio artista àquela época. O fato é que o álbum veio e com ele também uma certa aura de energia alto astral que percorre toda a escuta da obra. Dentro daquilo que se poderia chamar de despojamento em razão de uma primeira leitura do nome do disco, imperam os recursos suaves de uma liberdade criativa que busca outros horizontes sem perder o seu traço essencial. E essa atmosfera leve e positiva já é sentida quando somos apresentados aos sampleados de Barato Total (música de Gilberto Gil) na primeira faixa do disco, Não se afasta de mim.

A composição que leva o nome do CD, feita em parceria com Ronaldo Bastos, além de trazer um ritmo bem cadenciado, apresenta a participação bastante acertada de Ben Lamar, músico norte-americano que toca e compõe com o Filial, grupo carioca de hip hop. Por aqui, também o samba passeia majestoso em Beleza, Queda e Você não entende nada (canção de Caetano Veloso). Feriado revela o apuro de Celso em buscar outras possibilidades no ofício de dar forma a suas composições. Prova disso está em Viajando na viagem, música que exala um suingue na medida certa e onde o próprio Celso faz uma dobradinha com Marcelo D2. Um dos pontos altos do disco é a surpreendente transformação pela qual passou o hit Se ela dança eu danço, funk do MC Leozinho. O arranjo e a construção melódica da música engrandecem a composição pelo fato de voltar as atenções à letra, aspecto que passava despercebido, pelo menos para mim, na sua versão original. Num álbum que sabe muito bem visitar as alamedas de nossa música, a atitude positiva transcende as canções e nos empurra para os claros de tudo. Afinal, a vida urge sempre e cada vez mais.






JANELA POÉTICA (VIII)


Foto: Leila Lopes



da mesma dor ou de certa delícia

Leila Lopes


não posso te falar todo dia
da mesma dor ou de certa delícia

distribuo parte da sombra que me cabe
ando com pés doloridos do final
(de cada era)

o doce sabor da noite te espera
confundido em quimeras, coisas invisíveis

conservo o que não deveria de fato,
e digo:
perceber o sabor que o escuro guarda
é poder dispor o teu corpo cansado
numa cama absoluta de cores plenas








CINZAS DO SOL 3

Floriano Martins


Imagem: Floriano Martins


Livro de Ângela

Deitas teu corpo sobre o meu: fragmentos do infinito. A taça de brandy enquanto releio anotações de nossos dias juntos. Rabisco algo. Sinto frio diante do silêncio. O desafio da criação nos reduz ao inevitável. Nossas vidas estão repletas de pequenos desastres. Tenho consciência de tua morte a cada tremor de teu corpo. O gozo me furta a chave de novos sofrimentos. Sou tua sagração. Tua linguagem que desaparece a cada palavra que escrevo. Também a noite suprime a simplicidade dos corpos que buscam refúgio em sua arca. Se concordas comigo é o fim.



(Floriano Martins é cearense e já publicou alguns livros, entre poemas, ensaios, traduções e preparação de antologias alheias. Edita uma revista virtualíssima, a Agulha. Tem uma incorrigível inclinação para envolver outras pessoas em tudo que faz, em decorrência do que certamente estejam em curso projetos dentro e fora do país, envolvendo a publicação de livros e a organização de eventos)




Foto: Sérgio Luiz Pereira da Silva







NOSSOS AGRADECIMENTOS



Foi com grande alegria que recebemos de nossa leitora Sônia C. Prazeres a indicação para o PRÊMIO ESCRITORES DA LIBERDADE. A iniciativa tem como um de seus objetivos principais fomentar uma maior integração entre os produtores de textos pela grande rede. Agradecemos a gentileza e torcemos para que a Internet se afirme como um espaço verdadeiro de realizações em prol da cultura.








Foto: Sérgio Luiz Pereira da Silva






* Uma das paixões do potiguar Sérgio Luiz Pereira da Silva é a fotografia. O seu olhar acolhe o mundo e suas gentes numa dança profunda e original. O cotidiano e também a tipicidade de cada lugar registrado inundam a imagem e nos permitem fazer parte de cada cena da vida que ele nos apresenta.

 
publicado por Fabrício Brandão
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