31 de jul. de 2008,12:36
VIGÉSIMA TERCEIRA LEVA
Foto: Paulo Lima





um tapete vermelho nos conduz
e delimita o espaço da mente
reservado às cores da lucidez

ódios acumulados acordam
na envergadura do dia
e berram do berço escurecido
de tantas loucuras humanas

nos tempos vermelhos da mente,
urgência de face banhada no branco luz,
um céu de estrelas imaginárias,
preces e passos necessários

por caminhos precisos
na medida justa da beleza
de uma embrutecida cena interior


(CENA INTERIOR, Leila Lopes)









CICERONEANDO


O corpo, palco de nossos instintos e expressões, ergue-se sorrateiramente para além dos dias, atravessando as esquinas dos mistérios que se aproveitam da infância de nossas crenças. Qual um receptáculo de preces, algumas delas sem razão aparente, a arte desenha as nuances tracejadas no mapa modificável de nossas rotas. A cada um é dado o seu pensar das formas, saber e sabor degustados quando tudo se parece com o mais tímido desejo de libertação. Assim ficamos, humanizados a um só tempo e lugar, nas vias imagéticas que conduzem a sensibilidade das horas todas. Nesse altar de contemplações difusas, um pouco dos signos das gentes nos é ofertado através das lentes de Paulo Lima. De tudo o que brota sob a forma de urgências do ser, versos sabem precisar instantes saídos de Prisca Agustoni, Gustavo Felicíssimo, Maria Angélica, David Cortés e Denise Kasburg. Capitaneada pelos impulsos imagéticos da sensualidade, Samantha Abreu nos toma em “Possessão”. Nas linhas do escritor Vicente Franz Cecim, somos percurso inconteste em busca do UNO, de nossa gênese, mistério a decifrar pelos dias que escrevemos com VENTO. Numa entrevista com o fotojornalista Evandro Teixeira, olhar e memória são a maior virtude de um alguém que escreveu com a luz parte de nossa história. Na crônica de W. J. Solha, somos conduzidos a dissecar um pouco a narrativa de “Confissões de Um Anjo da Guarda”, livro de contos de Carlos Trigueiro. Em seu texto, Affonso Romano de Sant’Anna reflete sobre alguns lampejos de nossa contemporaneidade. A Sétima Arte deixa o seu convite através da intervenção do historiador Bolívar Landi. Que todas as alamedas aqui ofertadas, meu caro leitor, sejam também brindadas ao som de Esperanza Spalding e Zuco 103!



*Comentários podem ser feitos através do link EXPRESSARAM AFINIDADES no final da Leva.










POSSESSÃO

Samantha Abreu




Foto: Paulo Lima




Em cada contorno um perigo. Curvas são assim: nunca se sabe o que vem depois da virada. Por isso, prefiro, eu mesma, dirigir. Sei bem das minhas ribanceiras. Desço despenhadeiro abaixo e, quando chego à cintura, minha mão já não é mais minha. Amor tem dessas coisas. O poeta disse uma vez: “transforma-se o amador na coisa amada, por virtude de muito imaginar”. Eu concordo com ele: senão essa qual outra explicação para esses dedos serem os seus, a essa altura do ventre? Pois bem, eu apenas fecho os olhos. O resto é só possessão.


(Samantha Abreu é de Londrina, PR. Escreve os blogues Alta Intimidade e a série Mulheres sob Descontrole. Tem textos publicados em revistas, sites e antologias. Escreve para se fazer de outras, para fantasiar e, no final das contas, poder sair da festa sem ser vista)







Foto: Paulo Lima






JANELA POÉTICA (I)


PESADELO*

Prisca Agustoni


Fique atento
você que ocupará
o passado:
evite de todo modo
as rasuras.
Porque há alguém
de malas vazias
pendurado no teto

e que, às vezes,
desce com a noite.


*Poema integrante do livro A morsa, no prelo pelas Edições Sans Chapeau.


(Prisca Agustoni nasceu em Lugano, Suíça, onde se iniciou à poesia e às artes plásticas. Morou muitos anos em Genebra, onde fez teatro, dança, e estudou Filosofia e Letras Hispânicas na Universidade. Aqui ganhou segunda vida. Atualmente mora no Brasil, em Minas Gerais. Poeta e narradora, escreve em português, italiano, espanhol e francês)









OUVIDOS ABERTOS (I)

Por Fabrício Brandão



ESPERANZA SPALDING – ESPERANZA



Basta ouvir a primeira faixa desse disco para se ter certeza de que o caminho a ser desbravado pelos sentidos tem muito a revelar. Aqui me refiro à belíssima interpretação de Ponta de Areia, canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, que ganha novo impulso na preciosidade vocal da norte-americana Esperanza Spalding. Dona de uma performance capaz de encantar aos ouvidos mais exigentes, a jovem artista, que acumula habilmente as feições de contrabaixista e cantora, traz em seu trabalho todo o vigor contido num ambiente de altíssimo bom gosto onde o jazz impera absoluto. De ponta a ponta, o repertório e seus belos arranjos que mesclam influências variadas como o samba, consegue ser algo deveras arrebatador, unindo com maestria sonoridade e conteúdo.

Esperanza é um álbum que devota especial atenção aos recursos melódicos e harmônicos capazes de promoverem uma incursão pelas amplitudes possíveis da música. Nesse aspecto, podemos perceber claramente a presença de uma certa brasilidade no disco, traço que reafirma a condição da artista enquanto apreciadora inconteste de nossa boa música. Exemplo disso é a canção Samba em Prelúdio (Vinícius de Moraes e Baden Powell), onde um diálogo preciso entre violão e contrabaixo acústico produz um magnífico resultado. É difícil eleger um ponto alto do disco, pois o talento de Esperanza predomina por toda a escalada sonora da obra. No entanto, é possível arriscar a sugestão de escutas atentas a I Know You Know, I Adore You (que cativa pela conjunção entre vocalizes, coro, percussão e piano), Body & Soul e Precious. Depois de todo o percurso através das trilhas ciceroneadas pelo apuro inconteste do talento de Esperanza Spalding, a certeza maior que permanece é a de que a boa música se assemelha a um cristal resistente, cuja translucidez acalenta uma vastidão de olhares que se cruzam sem hora marcada.









Foto: Paulo Lima











JANELA POÉTICA (II)


SENDA

Gustavo Felicíssimo


Sou como o invisível céu
que não vos inspira cuidados,
pois retorno depois das névoas
sobre os campos abandonados;

sou finito e celebro o fogo
infindável do grande jogo

a nos enlaçar a garganta;
creio no vórtice da voz
sacrossanta que a tudo encanta;

trago os haveres desse mundo;
sou terra, sou campo fecundo.



(Gustavo Felicíssimo é natural de Marília, interior de São Paulo, e radicado na Bahia desde 1993. Atua como produtor editorial. Poeta e ensaísta, foi aluno atuante da oficina de criação literária de Maria da Conceição Paranhos. Colabora eventualmente com o Caderno Cultural do Jornal A Tarde (Salvador). Fundou, juntamente com outros escritores, o tablóide literário SOPA, em Salvador, do qual foi seu editor. Edita a revista literária POESIA & AFINS)













Foto: Paulo Lima















Isso, O Aquilo, O Sem Nome, O

Vicente Franz Cecim




O que faz a árvore, o que faz o vento, o que faz eu me perguntar essas coisas?


- Lá.


Vê: aquela árvore, lá, se movendo.
Vês, vendo?
Parece coisa de sonho, não é? Aquela árvore longe, no horizonte se movendo.

O que move a árvore?

Para isso a gente tem uma resposta humana na ponta da língua: o vento. Outro Verbo.

Mas, ah, o que sopra o vento?

Para isso, eu não tenho a resposta.

Tu tens?

Ninguém tem, te digo.

É o Isso, o Aquilo, o Sem Nome,

e de onde vindo ninguém sabe, pois só sabemos que ao chegar aqui vai logo se escondendo de nós sob muitas formas, as Várias: aves, estrelas, insetos, peixes, e de vento vento

Pois se até sob a forma humana se esconde, em nós.

E se aquela árvore, lá, parar de se mover?

Para onde terá ido?

Diz-se disso: o vento sopra em toda parte, o vento: o Vento.

Da minha boca, agora mesmo ele está soprando para ti sob a forma destas palavras, onde também está e se mantém, escondido. Abro a boca, sopro um pensamento, e eis: ele aparece, mas desaparecido, pois só percebes as palavras.

Ouve, assim, com a tua mão roçando a minha boca.

É a voz do vento das palavras.

Sentes?

Ah, olha: agora a árvore parou de se mover.

Vês? Não-vendo¿

Ele terá ido embora dela, ou se mantém lá, nela, até a próxima brisa, ventania, sopro disso que nos sopra? Escondido¿

São muitas as perguntas que nos fazemos só de olhar as coisas, não é?

Então, essa que eu me faço agora: esse vento que sopra pela minha boca sob a forma das palavras com que estou te perguntando isto: ele é o mesmo vento que, antes, soprava lá aquela Árvore, longe, no horizonte, e agora veio soprar em mim, através de Mim?

Pudesse, pois se Isso sopra os ventos um só, se dispersando em vários istos, vários ventos, peixes, homens

Ou será que depois que deixa de ser o Isso ele é, em cada isto, um Isto que não se compara a nenhum outro?

Então, são muitas as perguntas que fazemos a elas, sós, olhando as coisas

As Coisas.

Elas, de Lá, nos olhando.

Aqui.

E aqui: um tU e um eU. Peixes homens

Ah, somos mesmo dois homens conversando, ou só um? O Mesmo.


O Um¿




(Vicente Franz Cecim nasceu e vive na Amazônia, em Belém do Pará. É autor de “Viagem a Andara oO livro invisível”, que transfigura a sua região natural, a Amazônia, em Andara: região-metáfora da vida onde o sobrenatural emerge em epifania. É onde ambienta todos os seus livros. Sua Escrita, libertada em alquimia, aboliu a\distinção entre a prosa e a poesia, e através do profano e do sagrado se lançou em intensa busca do sentido do ser-não ser, demanda do que passou a chamar de Emanessência. Suas obras mais recentes são: “K O escuro da semente” (Ver o Verso, Portugal, 2005) e “Ó Serdespanto” (Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2006)










Foto: Paulo Lima












JANELA POÉTICA (III)

Maria Angélica



Indefinido enquanto causa,
Serpenteias no meu artigo,
Por ora estás descansando à sombra,
Por ora a sombra te esfumaça no carvão com o qual desenhas
Traços de gritos em espasmos retintos
Dos teus ais suspensos na responsabilidade dos dias.
Flagro-te na fragilidade das vestes que não protegem teu corpo,
Iceberg à espreita do trópico,
Do calor do colo, do afago profundo,
Do substantivo cru, nada comum, nem tampouco abstrato.
Lugar do ser indefinido pelo objeto,
Onde a rudeza áspera assopra aos ouvidos medidas incautas,
E a prosa é corrompida pela estaca dos imperativos e das realidades
nunca absolutas.



(Maria do Rio de Janeiro, num blog, num log, num fog de imagens, palavras...mas eis-me aqui diante desta situação...a traçar, a fiar desafiando um precipício...e retalhando a mim mesma pra depois costurar as irregularidades com pontos decorativos, em linhas de meadas que recontam as velhas estórias bordadinhas, assim, à mão, sentada no chão, à noite)










Foto: Paulo Lima










PEQUENA SABATINA AO ARTISTA

Por Fabrício Brandão



Diante de um mundo vasto em complexidades e expressões, a tônica essencial dos instantes muitas vezes é esquecida pelo modo banalizado e apressado com o qual encaramos a realidade. No entanto, transpor essa barreira não é ofício encerrado nos porões do absolutamente impossível. Tal como cantam Chico Buarque e Edu Lobo na intensa Choro Bandido, poetas (e aqui é possível ampliar o alcance do termo aos artistas em geral) podem ver na escuridão. Felizmente, há quem empreste à sua labuta significados despercebidos pelas multidões e ao mesmo tempo ricos em sensibilidade. De todos os recursos empregados nessa especial tarefa, talvez o olhar seja o mais importante e o mais desafiador. E é bem no centro desse ambiente diferenciado das percepções que se encontra o trabalho do fotojornalista baiano Evandro Teixeira. Em 50 anos de profissão, ele ousou fazer um percurso no qual suas lentes captaram bem mais do que o óbvio tão característico nas coberturas de imprensa. Todos esses atributos ganham sentido quando o algo mais valioso que recebemos das imagens dele é a sua capacidade precisa de recortar a realidade e oferecê-la ao deleite particular de nossas visões.

Trazendo em seu vasto curriculum coberturas de importantes fatos que marcaram o contexto nacional e mundial, grande parte deles a serviço do Jornal do Brasil, Evandro é mais do que um mero coadjuvante dos acontecimentos, processo no qual ele mesmo se considera um construtor da história registrada. O caráter emblemático de trabalhos como o da Passeata dos 100 Mil, que compreendeu o período assinalado pela ditadura militar brasileira, permanece aceso e agora vem reunido num livro de imagens. 68 Destinos – Passeata dos 100 Mil é uma obra que, além de reunir registros fotográficos importantes do período vivido pelo nosso país, traz também em seu conteúdo relatos de 68 personagens integrantes da foto símbolo daquela manifestação histórica. No calor significativo das repercussões de seu novo livro, Evandro Teixeira recebeu a Diversos Afins numa manhã ensolarada em Salvador para uma conversa onde traços sensíveis de sua trajetória, memória e olhar tomam lugar de destaque.



Evandro Teixeira
Foto: Leila Lopes



DA - Os registros fotojornalísticos exigem do fotógrafo uma habilidade extrema em conciliar técnica, tempo escasso e olhar apurado. Qual o melhor caminho para se fazer do fato captado um flagrante diferenciado e, por assim dizer, especial da realidade?

EVANDRO TEIXEIRA - Acho que existem fotógrafos e fotógrafos. Nós temos grandes profissionais em nosso país e no mundo. O Brasil tem uma fotografia de belíssima qualidade e hoje estamos além daquilo que se possa imaginar em termos de imagem e fotografia. O que acontece com a gente aqui é que não se tem incentivo, nem galerias e nem como você produzir e divulgar o seu material. Você nasce com o dom de ter um olhar especial. Eu gosto de ser diferente na fotografia. Tem que haver um diferencial. Acho que tenho um olhar especial, um olhar agudo. Sou muito exigente comigo mesmo.

DA - Atualmente somos intensamente bombardeados pelas investidas de uma mídia fortemente voltada para o “culto ao espetáculo”, onde as imagens, por vezes, se prestam à construção de significados vazios. Como você se posiciona nessa discussão?

EVANDRO TEIXEIRA - Em grande parte, a tecnologia moderna, com suas câmeras digitais, banalizou a atuação das pessoas. Todo mundo hoje se acha fotógrafo. Você está num evento e, às vezes, dá até uma certa agonia quando vê todo mundo fotografando, mandando suas fotos para os jornais. De uma certa maneira, as empresas também são culpadas porque só querem saber de custos, recebendo materiais até mesmo de graça e achando tudo ótimo. Essa banalização tornou tudo fácil para todo mundo.

DA - No ambiente histórico da obra “Canudos 100 Anos”, mais do que gestos, formas e outras expressões, paira uma dimensão poeticamente revelada da alma nordestina. Qual foi o seu maior desafio nesse trabalho?

EVANDRO TEIXEIRA – Canudos foi e continua sendo um desafio pra mim. Algo que me emocionou muito e me gratificou bastante. Foi uma história passada pela minha avó materna, Dona Maria, que sempre contava a saga do Antônio Conselheiro e aquilo foi sendo gravado na minha memória. Quando estudante, li “Os Sertões”, depois me tornei jornalista e era o meu sonho ir a Canudos e realizar alguma coisa sobre o lugar. Foram quatro anos de vivência e emoções. Na década de noventa, fiquei em Canudos e lancei o livro em 1997. Depois disso, religiosamente eu volto lá todos os anos. Canudos tem uma história emocionante e importante no contexto brasileiro. Tive uma vivência especial, espetacular, um conhecimento com aquela gente, que nos dá uma lição inesquecível, algo a ser eternizado. Lamento não ter ido muito mais cedo a Canudos e ainda bem que pude conhecer alguns remanescentes e participantes diretos da saga do lugar, gente que me recebia com um carinho com o qual eu até algumas vezes chorei. Fiquei tão ligado a Canudos que até parece uma obsessão, mesmo quando estou viajando por outros países, fico pensando que tenho de voltar lá. Virou uma espécie de referência em minha vida.

DA - Em muitas situações, fotografar pessoas parece fazer parte do complexo terreno dos estranhamentos. De um lado, as lentes e convicções do profissional. Do outro, as manifestações do objeto pretendido. Como funciona esse pacto na sua atividade?

EVANDRO TEIXEIRA – Eu acho que tenho uma espécie de imã, algo que atrai as pessoas. Sei chegar e conquistar as pessoas, abordá-las e dominá-las no bom sentido. É preciso saber chegar até elas no momento certo. Nunca tive dificuldade nesse processo de conquista dos personagens e saber lidar com eles é muito gratificante.



Foto: Leila Lopes



DA – Como você percebe a relação entre fotografia documental e realidade?

EVANDRO TEIXEIRA – Eu trabalho em jornal, com o cotidiano do Brasil e do mundo, e gosto de construir esse trabalho documental, de construir uma história. Livros como Canudos 100 Anos, Tributo a Pablo Neruda e 68 Destinos – Passeata dos 100 Mil utilizaram a fotografia para construção da história. A fotografia tem essa importância de denunciar, de mostrar determinados momentos históricos.

DA - A sua foto da “Passeata dos 100 Mil” talvez seja a que represente mais vigorosamente o período de contestações à ditadura militar brasileira e foi justamente o ponto de partida do seu mais novo livro, “68 Destinos - Passeata dos 100 Mil”. Diria que um dos objetivos dessa recente obra foi possibilitar também um diálogo entre gerações?

EVANDRO TEIXEIRA – De uma certa maneira, sim. Naquele dia, quando eu produzi aquela imagem, vivíamos um período de incertezas, em que eu não sabia até mesmo se conseguiria voltar para o jornal, se seria massacrado ou teria o material e o equipamento danificado ou apreendido. Era importante você ter algo que pudesse contar em imagens a história daquela ditadura louca na qual vivia o país. Naquela imagem, eu fiz um detalhe da multidão de 100 mil pessoas e usei a Laika, câmera que possuía uma qualidade maravilhosa em primeiro, segundo e terceiro planos. A geração de hoje, especialmente os estudantes, está mais individualista, nas suas tribos. O livro tem esse sentido de unir as gerações. Mais do que um livro de fotografias, é um livro didático e que se presta a contar um pouco da história vivida naquela época dura do Brasil.

DA - Longe de possíveis nostalgias, o resgate de nossa memória seria uma referência adequada aos nossos desencantos atuais?

EVANDRO TEIXEIRA - Acho que o livro tem um pouco disso também, o de servir como uma referência às pessoas para lembrarem de nossa história. Elas hoje não estão muito ligadas ao passado. O Brasil é um país sem memória e as pessoas também. Lembro-me até de um momento de nossa história, em que a ditadura militar destruiu o Palácio Monroe, onde ficava o Senado Federal no Rio de Janeiro, prédio que possuía uma arquitetura lindíssima e que foi derrubado sob o argumento de que o metrô tinha que passar por ali. Depois disso, um arquiteto provou que a construção do metrô não tinha nada a ver com a necessidade de demolição do espaço. O Brasil não gosta do seu passado.

DA - Com toda a sua vivência através do olhar, qual a melhor visão aprisionada em sua retina?

EVANDRO TEIXEIRA - Eu fiz várias coberturas, dentro e fora do Brasil. Alguns momentos me emocionaram. Por exemplo, o Massacre da Guiana Inglesa, com aquele fanático Jim Jones, foi um momento terrível, triste, onde você chegava na selva e encontrava 957 pessoas estiradas ali, mortas por envenenamento. E você olhar de perto aquilo é uma loucura. Foi um trabalho chocante, principalmente por estar diante daquele cenário onde o exército americano demorou mais de uma semana para resgatar os corpos. Mas tem uma foto que me gratifica muito, a do Casamento de Paraty, onde duas pessoas bem caipiras mesmo se casam. É uma imagem que gosto muito pela simplicidade e ingenuidade dos personagens. A história dela é que eu estava em Paraty, em 69, e, ao passar pela porta de uma igreja, vi a saída de um casamento e pensei: que coisa maravilhosa!. Saltei do carro e comecei a fotografar aquelas pessoas na sua simplicidade. Depois, elas se dirigiram a um boteco, pediram um litro de leite e um pacote de bolachas e ali fizeram a festa deles. Olha que coisa genial e maravilhosa! Não tem como registrar isso em imagem. Agora, o trabalho que mais me emocionou foi o Enterro do Neruda, no Golpe Militar do Chile, por ter sido o único a fotografá-lo morto num momento terrível da história daquele país.













Foto: Paulo Lima













JANELA POÉTICA (IV)


EL AUSENTE*

David Cortés Cában



Para que mi presencia sea menos incierta
dame tu voz cuando entras con tu pequeña corona
y dices lo que vieron tus ojos
y resplandeces
Me esperarás?
Y ustedes ocultos pájaros
serán luminosos
Se asomarán a la serena virtud
por donde entran las costas
combatiendo
oscuras premoniciones
atardeceres de este invierno
con la nevisca aún sobre el ramaje
mientras un poco de sol cubre la gran armonía
donde el amor acontece
Ah lejanas costas lejanas costas
leve silbido de otoño grata libertad
llevada por hermosas bocas abiertas
sobre mi pecho
Llévenme ahora antes que otros paisajes
provoquen mi alma.


*Poema integrante do livro inédito Jardín abstracto y real.


(David Cortés Cabán nasceu em Arecibo, Porto Rico, e publicou “Poemas y otros silencios” (Río Piedras, P.R., 1981), “Al final de las palabras” (New Jersey, 1985), “Una hora antes” (Madrid, 1991), “El libro de los regresos” (Madrid, 1999) e “Ritual de pájaros: Antología personal” 1981-2002). Seus poemas e resenhas literárias têm sido publicados em revistas dos Estados Unidos, México, Brasil, Venezuela, Porto Rico e Espanha.)










Foto: Paulo Lima













A TÉCNICA DA ENUMERAÇÃO EM CARLOS TRIGUEIRO

W. J. Solha



Ao ler a série de contos de “Confissões de um Anjo da Guarda” (Bertrand Brasil, 2008), de Carlos Trigueiro, autor de outras obras marcantes, como o “Livro dos Desmandamentos”, “O Clube dos Feios” e o “Livro dos Ciúmes”, volto a me encantar com seu estilo denso, amargo, enxuto, sarcástico, e a me intrigar com o que acabei percebendo ser um de seus sestros de notável artífice da palavra: o uso recorrente da enumeração como forma de ampliação visual e conceitual dos relatos.

O volume é composto de uma série de histórias envolvendo anjos, esses personagens levados a sério pela Bíblia, a “Divina Comédia” e “O Paraíso Perdido”, mas nem tanto em textos contemporâneos, como o belo “Um Senhor Muito Velho, Com Umas Asas Enormes” (de García Márquez), ou filmes como “Asas do Desejo” (de Wim Wenders), seu remake “A Cidade dos Anjos” (de Brad Silberling), bem como “Michael – Anjo e Sedutor” (de Nora Ephron) e o clássico “A Felicidade Não se Compra” (de Frank Capra). Carlos Trigueiro comprova que esses frangões humanos com livre trânsito nos Céus e na Terra ainda rendem muito, de um modo ou de outro, especialmente quando se quer brincar com a condição humana.

Acho que todo mundo conhece o poema “Isso é aquilo”, do livro “Lição das Coisas”, produto de Drummond já maduro, onde ele se limita a uma longa enumeração que começa com “o fácil o fóssil / o míssil o físsil” e termina com “O cudelume Ulalume / o zunzum de Zeus / o bômbix / o ptyx”. Cada palavra colocada ali tem uma relação sonora com as demais, porém sempre com outro sentido, provocando, pelo acúmulo, um efeito poético extraordinário. Não é de graça que o anjo Mahlaliel diz, na segunda página do livro de Trigueiro, na estória que tem o mesmo título da coletânea:

– “Eu já desconfiava que as obras da Criação sempre estiveram a meio caminho entre a verdade e a versão”.

Daí, talvez, que tenham tachado esse malandro de “rebelde, devasso e inconfidente”, pelo que se viu obrigado a abrir mão de “trajes, acessórios, espaços, regalias, imagem, invisibilidade, segredos, reputação, poderes, armas e artimanhas”. Mais adiante, especifica: “Recolheram-me asas, vestes, halo, chancas, alabarda, sambuca e aquelas nuvenzinhas precursoras do skate”.

Trigueiro me passa a impressão de alguém que faz escrita automática, como a dos surrealistas e dadaístas. Sexo dos anjos? “Hoje tem anjo macho, anjo fêmeo, anjo frígido, anjo esterilizado, anjo siliconado, anjo de programa e os que não estão nem aí para referências sexuais”. A relação dos que Mahlaliel já custodiou?: “profetas, bruxas, rainhas, centuriões, bárbaros, filósofos, diplomatas, reis, conquistadores... e plebeus, bandidos, políticos, jornalistas, desocupados, pintores, músicos, juristas, escritores, grafiteiros, funcionários públicos e os precursores dos blogueiros”.

Para se disparar essa metralha vocabular, há que se ter imaginação fervilhante, claro. O recurso, além de abrir a narrativa para uma infinidade de roteiros colaterais, de repente, noutros pontos, dá a elas uma velocidade frenética. No segundo conto, por exemplo, “Miguel enviou o currículo para agências de empregos, head-hunters, consultorias, seguradoras, financeiras, bancos, imobiliárias. Não obtendo resposta, fez promessas para os santos protetores de negócios, rezou, acendeu velas, jejuou, arquivou a libido”. Geralmente, como se vê nesse caso e no da nuvenzinha lembrando skate, a série termina com um tranco maroto. Bem machadiano, isso.





No conto “Obsessão”, o personagem Peterson, que é engenheiro, “se sentia realizado em canteiros de obras, regendo conjunto de bate-estacas, gruas, serras, tornos, empilhadeiras, soldadoras, e sentindo cheiro de cimento, argamassa, cola, tinta, suor de operários, lidando com mestres-de-obras mais sabidos do que mestres”. Essa ironia, machadiana, é exemplar em “O Jornalista”:

“O Mercado é sensível a corrente de ar, vírus de computador, boatos, enchentes, manchetes de jornais, licitações públicas, escutas telefônicas, prêmio de loteria acumulado, horóscopo...”

Numa conversa a respeito de “Confissões de um Anjo da Guarda” que tive com o professor de literatura brasileira da UFPB – o grande poeta Sérgio de Castro Pinto – perguntei-lhe o que lhe lembrava esta declaração do Carlos Trigueiro na estória “Clínica para Normais”:

“A distância custou-lhe vinte e oito libras, três quartos de hora e meia dose de paciência”.

- Ora, Machado de Assis no capítulo XVII do “Memórias Póstumas de Brás Cubas”: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”.

Machadiano. Carlos Trigueiro é machadiano, claro. Observe estes trechos do capítulo XIII de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”:

“... a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las.”

“Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas.”

“Um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória.”

“Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostras, barba raspada; vejo-te bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho.”

A coisa vai longe.

A marca de Carlos Trigueiro, porém, está na exasperação desse expediente. Na forma e no conteúdo. No capítulo 21 do “Livro dos Desmandamentos”, por exemplo, há um parágrafo antológico:

“Sob o império dos atos institucionais, qualquer vacilo, deslize ou equívoco no andar, falar, rezar, cantar, escrever, tocar, pensar, respirar podia acabar mal. Um gaguejo podia ser interpretado como linguagem subversiva codificada. Daí, vinte e dois mil, setecentos e quarenta e oito gagos desapareceram sem terminar o que iam dizer. Outra barbaridade sucedera àqueles que, por causa de um tique nervoso, piscaram na hora errada: nove mil, setecentos e setenta e sete ficaram caolhos.”

Veja-se este excerto do capítulo LXVII do mestre fluminense, em “Quincas Borba”:

“Estirado no gabinete, evocou a cena: o menino, o carro, os cavalos, o grito, o salto que deu, levado de um ímpeto irresistível.” Agora veja ação semelhante, desenvolvida num conto de “Confissões de um Anjo da Guarda” – “Anjos Exterminadores” – cujo título, por evocar uma das obras-primas de Buñuel, trai a influência do cinema nessa exacerbação da técnica machadiana. Aí, “o menor C.P.F., vulgo Papelote, sem anjo da guarda”, sobe, depois desce o morro na mesma carreira de assaltante em fuga, e eu chamo a atenção para a velocidade da cena obtida pela enumeração, o... pinturesco de tudo que nela se menciona, a carga cinematográfica dessa disparada de fotogramas:

“Correu, correu, dobrou, direita, esquerda, correu, correu, subiu a escadaria do morro, subiu, saltou vala, pulou muro, mureta, atalhou daqui, dobrou dali, pulou barranco, bicicleta, macumba, chutou cachorro, lata de lixo, vazou birosca, barraco, derrubou porta, pulou janela, cerca, cercado”, etc, e, na página seguinte, a volta: “correu morro abaixo, saltou vala, valeta, pulou muro, mureta, macumba, despacho, farofa, vela de sete dias, garrafa de cachaça, cachorro, gato preto, pinto no lixo, gaiola de curió, pardal esfomeado, arco de barril, virou ali, acolá, subiu, desceu, atalhou, e correu, correu, correu....”

Genial.

É difícil conseguir a marca registrada de um jeito de escrever, mesmo quando assimilado de outro, que já parecia ter levado o macete às últimas conseqüências. Difícil, mas não impossível. O arcanjo que se ajoelha diante da Virgem - na “Anunciação” de Botticelli - nada tem a ver com o que aparece na tela de Leonardo sobre o mesmo assunto, embora sejam ambos produtos do Quattrocento. Carlos Trigueiro confirma, neste “Confissões de um Anjo da Guarda”, seu virtuosismo narrativo, do tipo que você lê uma vez e a ele retorna, intrigado, ansioso por saber como a coisa funciona.

“Tenho muitos nomes – diz um de seus notáveis personagens - Anjo Caído, Anjo Rebelde, Belzebu, Satanás, Capeta, mas pode me chamar de Diabo. Fico mais à vontade.”



(W. J. Solha produziu, com o escritor José Bezerra Filho, o primeiro longa-metragem de ficção, em 35 mm., paraibano - "O Salário da Morte". Foi ator nesse filme e em "Fogo Morto", de Marcus Farias, "Soledade", de Paulo Thiago, "Lua Cambará", de Rosemberg Cariry, e "Bezerra de Menezes", de Gláuber Filho. Ganhou os prêmios Fernando Chinaglia 1974 com o romance "Israel Rêmora", INL 1988 com o romance "A Batalha de Oliveiros", ganhou o Prêmio Graciliano Ramos, da UBE Rio com a "História Universal da Angústia" (romances, contos e um roteiro de cinema) e o Prêmio João Cabral de Melo Neto, da mesma UBE Rio com o poema longo "Trigal com Corvos")







INSCRIÇÕES

Fabrício Brandão


Foto: Paulo Lima


Enquanto monólogo escalando madrugadas, esqueci de tecer os fios daquelas intermináveis noites acesas. Fogo intermitente, o templo corpo postulou idiomas estranhos numa ciranda que soube bailar desejos acrobatas. À luz de prosa e espera, cada parte de mim é grão dessa estória incansável das vontades de alma. Tua fala subentendida agora me ajuda a esculpir aquelas pequenas grandes verdades só possíveis ao olho nu de um toque. Depois que as horas despirem suas vestes de encanto, aguardarei serena e cativa tua próxima visita ao meu generoso mundo.








DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Bolívar Landi



Ventos da Liberdade (The Wind that Shakes the Barley). Inglaterra / Espanha / Alemanha / Itália / França / Irlanda. 2006.



“Ventos da Liberdade” foi o grande vencedor da Palma de Ouro de Cannes em 2006 e apresenta uma forte carga política, abordando a formação do IRA, o Exército Republicano Irlandês. O roteiro se passa na Irlanda na década de 20, após o término da 1ª Guerra, durante a ocupação britânica ao país. O Império Britânico era até então a maior potência econômica do mundo e fazia sentir o seu domínio sobre outras nações. A história mostra a reação de um grupo de revolucionários às atrocidades cometidas pelas tropas estrangeiras que se instalaram em seu país.

A obra procura desmistificar a imagem do IRA, considerado por muitos como cruéis terroristas e por outros como heróis que lutam para resgatar a soberania de sua pátria. Este é um tema espinhoso, mas o diretor britânico Ken Loach consegue conduzi-lo de forma coerente, expondo as motivações e as fragilidades morais do movimento. O filme ajuda a entender a origem das tensões que até hoje estão presentes naquela região, revelando suas implicações de ordem econômica, política e religiosa.

Algumas cenas são chocantes e nos causam revolta e perplexidade. O ambiente de guerra consegue despir o homem dos seus vernizes e não raras vezes nos horrorizamos com o que ele se mostra capaz de fazer. O filme não se propõe, contudo, a oferecer respostas, mas apresenta questionamentos difíceis de serem respondidos: Na defesa de um ideal, temos o direito de negligenciar questões de ordem moral? Ceder é um ato de inteligência, covardia ou interesse? Resistir é prova de traição ou heroísmo?

A película traz como protagonista o ator Cillian Murphy, que interpretou o travesti Patrick Brady em “Café da manhã em Plutão” do diretor Neil Jordan. Ken Loach retoma, mais uma vez, a temática que é recorrente em sua cinegrafia: a luta de classes. Ele, inclusive, já havia abordado, de forma sensível e competente, os conflitos pela liberdade em seu filme “Terra e Liberdade” (1995), que se passa durante a Guerra Civil Espanhola e ganhou o Prêmio da Crítica e do Júri Ecumênico no Festival de Cannes.

Em “Ventos da Liberdade”, a busca pela liberdade é angustiante, repleta de situações limite em que cada personagem é obrigado a escolher entre si mesmo e um ideal maior. Aqui, a liberdade cobra do homem um elevado preço: o aprisionamento do seu espírito.


(O Historiador e cinéfilo Bolívar Landi é colaborador da Diversos Afins)







OUVIDOS ABERTOS (II)

Por Fabrício Brandão



ZUCO 103 – AFTER THE CARNAVAL



Junte uma brasileira (Lilian Vieira), um alemão (Stefan Schmid) e um holandês (Stefan Kruger). Em seguida, acrescente à mistura um pouco de eletrônica, samba e bossa nova sem receio de errar nas dosagens. Para finalizar, tempere tudo com pitadas de suingue, essências de brasilidade e beats diversos. Agora, aguce os sentidos e deguste os ritmos. Se você não pecar nos preparos culinário-sonoros aqui reunidos, terá como resultado dos esforços uma bela porção chamada Zuco 103. O trio, formado em 1999 nos Países Baixos, assinala o sexto disco de sua trajetória demonstrando que os caminhos que afirmam sua musicalidade estão cada vez mais sólidos.

After The Carnaval agrada pela combinação muito bem equilibrada de estilos, mesclando em suas treze faixas a já tão registrada marca do grupo, o pop eletrônico, com influências da MPB. No entanto, todo o aparato costurado pelos apelos sonoros e rítmicos da banda não teria o mesmo vigor sem a bela voz de Lilian Vieira, que também faz as vezes de compositora. A boa música embalada no CD já nos lança de cara em canções como Nunca Mais, no suingue cadenciado de The Same Way, no canto que exala sentimentos regionalistas em Pororoca, no samba de Cria e em toda a atmosfera sentimental de Madrugada. Integrado ao que se convencionou chamar de World Music, o Zuco 103 percorre em sua trajetória trilhas que ambientam gêneros ligados à música latino-americana, ao dub, soul e ritmos africanos. A conexão estreita entre o global e o local certamente gera efeitos que se harmonizam sem a pressão das vanguardas. Aos nossos ouvidos, de certo, fica reservado o prazer de desenhar contornos próprios nesse borbulhante caldeirão multicultural.




Foto: Paulo Lima







A GUITARRA DE AR

Por Affonso Romano de Sant'Anna


Acaba de acontecer na França um campeonato de tocadores de guitarras invisíveis. E nos próximos dias, entre 20 e 22 de agosto, na Finlândia, ocorrerá o campeonato mundial de guitarras de ar. Não será a primeira vez, este será o 13º certame e reunirá representantes de mais de 20 países.

Os guitarristas sobem ao palco (sem guitarra nas mãos) e dão um show. Fazem todos os gestos típicos de Jimmy Hendrix ou de qualquer outro gênio da espécie como Kurt Cobain. Os dedos dobrados dedilhando o nada, o corpo badalando o invisível, o rosto fazendo as caretas acompanhando os acordes enquanto a platéia delira diante do ausente. Claro, a música existe em play-back, o instrumento é que é conceitual.

A prova consiste em duas etapas. Na primeira o concorrente escolhe a música que quer, e na segunda, conforme o regulamento “usa um mediador real". Há um júri que dá notas de 4,0 a 6,0.

Dizem os comentadores que este tipo de espetáculo é algo entre o humor e a arte contemporânea. Afinal de contas, Marcel Duchamp não havia dado de presente ao seu marchand americano uma ampola de farmácia cheia do "ar de Paris"?

Os artistas da guitarra invisível aprofundam essa proposta. Levam o falso ("fake"), a imitação e o "cover" ao extremo. Criam pseudônimos, artistas imaginários que tocam guitarras imaginárias. Criam biografias de músicos inexistentes, como o de um tal Juano Fonzo, que foi inventado pelo músico Pitt Feio (alusão a Brad Pitt), que por sua vez é pseudônimo de Guillaume de Tonquédec. Este revelou que Pitt morreu de uma overdose de "aeroína"- substância "mais funesta que a heroína". Tal herói confessa que optou pela guitarra imaginária porque aos 8 anos seu pai recusou-se a dar-lhe uma guitarra verdadeira.

Como se vê, Freud tem tudo a ver com a arte de nosso tempo.

Mas isto tem a ver também com um outro tipo de arte que nos deixa igualmente surpresos: a arte dos negócios. Vejam os jornais destes dias com notícias sobre fabulosos banqueiros e políticos. Alguns, como aqueles intangíveis guitarristas, tocam instrumentos que não existem, outros tocam negócios invisíveis, que, quando vistos pela Polícia Federal, provocam um desconcerto nacional.

Afinal, o que é uma bolsa de valores? O que é a criação de empresas fictícias que são lançadas no mercado gerando ações milionárias, cheias de ar? O que são os famosos "laranjas", utilizados como "fake", como "cover", imitadores, pastiches e paráfrases? Daniel Dantas, Naji Nahas, Cacciola e Eike Batista são grandes artistas, grandes jogadores no cassino das finanças, virtuoses internacionais da arte dos negócios.

Dest'arte, falando da arte dos negócios e do negócio da arte, por coincidência, no Museu de Arte Moderna de São Paulo foi inaugurada uma grande exposição retrospectiva de Marcel Duchamp. Além do vidro vazio ("L'air de Paris") esse grande ilusionista fabricou também uma nota falsa para pagar suas dívidas. Também inventou e imprimiu por conta própria umas ações do Cassino de Monte Carlo, pois era um jogador inveterado. Chegou a confessar que o jogo era seu vício e queria ser o melhor jogador de xadrês do mundo. Não conseguiu. Esse jogo tem regras fixas, e não pode cada jogador sair por aí inventando suas próprias regras. Mas no cassino das artes, deu-se bem. Intitulando-se "pseudo artista", um "anartista" virou uma referência na história da arte contemporânea.

Só falta os advogados desses que andaram pintando e bordando com o dinheiro alheio alegarem que eram artistas conceituais.



(Affonso Romano de Sant’Anna é colaborador da Diversos Afins)









Foto: Paulo Lima












JANELA POÉTICA (V)


ESSÊNCIA

microscopia de pessoas

Denise Kasburg


Cai plano, junto ao chão

paralelo mergulhado

paradoxa dimensão

molecular.

Ajuste de lentes: aumente cem vezes.

(Vacúolo.)

Bem no meio é bem no nada.

Invi(a)bilize sua alma.



(Denise Kasburg tem 20 anos, mora em Curitiba há 20 anos, e faz o curso de Biologia. Escreve poesia desde que se conhece por gente, coleciona cadernos, anda perdida procurando os rastros de natureza que restam pela cidade, pelas pessoas, pelos versos que podem vir. Ama o mar)







Foto: Paulo Lima








*Advogado por profissão e fotógrafo por paixão, o paulista Paulo Lima encantou-se pelo universo da fotografia desde criança. É perceptível em sua leitura de imagens uma atuação abrangente em cores, formas e estilos. Sua experiência aponta para a participação em diversas exposições, tendo sido premiado em algumas destas ocasiões. A percepção dos mistérios da expressão do corpo, promovendo uma incursão pelos signos envoltos em sensualidades e sutilezas do humano, é ponto forte em sua bela e inusitada jornada fotográfica.


 
publicado por Fabrício Brandão
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