28 de set. de 2008,16:53
VIGÉSIMA QUINTA LEVA





Foto: Ozias Filho










CICERONEANDO





É preciso ter muitas razões para temer a vida, esta inefável cadeia a explodir em todos, até mesmo naqueles que a negligenciam de pronto. Um temor reverencial, por certo, sem nada dever às projeções que nos aliciam aos poucos. Somos, por assim dizer, uma multidão de seres capazes de deter instantes contraditórios e desavisados em cima duma vastidão de sentidos que buscamos encontrar pelas esquinas todas de nossos horizontes imediatos. Os tais desejos quando irrompem de todo o modo vão à cata de emoções dispersas nos desbotados diários das mentes. Em cada esquina, alguém despencou seus ecos e, mesmo sem a pretensão de representar lirismos, disseminou crenças silenciosas nos espaços invisíveis, pois o próximo que ali respirar saberá reconhecer em si algo que lhe pertence. E esse mesmo olhar insone inscreve em carne viva seus delírios, sua cor, sua paixão pelo estranhamento. Gente como Nicolau Saião, Débora Tavares, Jacob Goldberg, Alexandre Bonafim e Wesley Peres faz da poesia um percurso marcante por sobre tais signos. Num conjunto de imagens intitulado Algures em Paris, o fotógrafo Ozias Filho deita seus olhos por entre epifanias humanas da capital francesa, revelando sentimentos que desconhecem fronteiras. Daniela Mendes, Gerusa Leal e Roberta Tostes pairam suas linhas em torno dos imperativos sensíveis da existência nossa de cada dia. Os contornos das sonoridades impressas em Piero Bianchi e Ricardo Chacon fazem parte de uma pequena conversa sobre música. O escritor André de Leones nos propõe três outras perspectivas de leituras. Nossas escutas estão atentas aos sons de Aline de Lima e da banda espanhola Vetusta Morla. Estes e outros caminhos e palavras acolhem desde já a sua nobre visita. A Vigésima Quinta Leva saúda seus leitores!







*Comentários podem ser feitos através do link EXPRESSARAM AFINIDADES no final da Leva.











JANELA POÉTICA (I)




ESPELHO


Nicolau Saião


ao Vincenzo Quillici




E depois de passada a porta

eis que ao seu encontro vieram

os verbos, o sol, os ventos, o calor

e alguns fantasmas misturados

na imagem e na memória que eles

de si mesmos conservavam

Na cabeça do espírito sobre a matéria

com que são feitas as realidades.


Sinais de longos anos imersos

na terra e nos seus céus já calmos

Um pescoço que se ergue lentamente

e roda e olha com seus olhos lá em cima

e volta para baixo e diz com sua boca

- comer, dormir, acercar-nos da hora

em que todos os minutos que passaram

se banham duas vezes na mesma água dum rio

que mudou de lugar


E tudo se detém

e só nos resta ouvir

os ecos do que dissemos antes dessa hora

em que já tudo foi

e será sempre

estranho e distante.







(Nicolau Saião nasceu em Monforte do Alentejo, Portugal. Poeta, publicista, ator-declamador e artista plástico. Participou em mostras internacionais de Arte Postal, além de ter exposto individual e coletivamente em vários países. Tem colaboração diversa na imprensa cultural em vários países. Orientou e dirigiu vários suplementos literários, tais como “Miradouro” e “Fanal”. Colaborador permanente da revista francesa “Carré Rouge” e das brasileiras “Agulha” e “Jornal de Poesia”. Está representado na revista “La Lupe.com – Círculo Internacional de Literatura Vanguardista”. É autor de “Os objectos inquietantes” (Editorial Caminho), “Passagem de Nível” (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos”, “O armário de Midas” (2001))










Foto: Ozias Filho














FLORAÇÕES


Roberta Tostes





Estou à primavera de sensações indóceis. Florações extremas, e no entanto, mudas, só eloqüentes de silêncio e olhar. Discretamente solitária, aguardo pela ventania inconfidente da alma, a fim de que ela cante minhas proezas, revele minhas histórias, as sonhadas e vividas. Minha quietude é de bosques que trazem a urgência dos verdes, revivendo a cada estação, o definitivo da vida. Cresço inesperadamente nessa temporada, feita de noites arrastadas, consumida no ópio de palavras silenciadas pelo medo de morrer de amor. A estrada desses mornos dias é longa demais, a rotina é uma reta que desejo bifurcar porque sonho com curvas de mulher. Sonham as curvas comedidas em mim. Mesmo calando sussurros, palavras, frases inteiras, orquestro-me, alcanço as estrelas dos meus delírios, agigantada por dores e agonias, por ilusões, sóis temporais, secretamente difundida nas minhas entranhas, nas dimensões multiplicadas de meus eus. Minha natureza sabe que, a despeito de quaisquer rios que eu navegue, desembocarei sempre em versos livres; e assim será até que as flores perfumem alegrias e tragédias.





(Roberta Tostes Daniel, carioca de nascimento, também é mineira - por vocação e herança familiar. Habita mar e montanha. Trabalha para sobreviver, escreve porque vive. Seu laço mais profundo com a existência é o que a une à palavra, aos sentidos e à memória. Reconciliada com o presente, agora explora sua outra acepção, porque assim o vive, prazerosamente, a conjugar amor. Mas seu grande desafio é o futuro, tão fluido. Vir a ser é a sua obra)











Foto: Ozias Filho











JANELA POÉTICA (II)




CERRADA


Débora Tavares




Quero


o murmúrio do ouvido na água


o estado de minério

a quietude da rocha


o mergulho da retina no escuro

a densidade da mata


a fundura de um leito de rio

para uma raiz alimentada





e então a voz.






(Débora Tavares é paulista, graduada em Letras. Ministra oficinas de criação de haicais. Tem poemas postados em diversos veículos literários: Revista Entrelivros, Jornal Rascunho (Curitiba), Jornal “O Casulo”, Revista Puçanga, Revista Máquina do Mundo, Germina Literatura, entre outros)












OUVIDOS ABERTOS (I)


Por Fabrício Brandão





ALINE DE LIMA – AÇAÍ








Dentre as mais variadas manifestações culturais, sem dúvida alguma, a música é uma das que mais operam a favor da redução das fronteiras deste vasto mundo nosso. Tanto é que algum tempo atrás ousaram inventar o termo World Music para definir toda uma espécie de fusão de ritmos peculiares das partes mais inusitadas possíveis do planeta. Em muitos casos, essa espécie de globalização facilitou o intercâmbio entre artistas de todos os cantos, tornando o terreno um verdadeiro solo comum de expressões onde todos se alimentavam das influências borbulhadas num instigante caldeirão de trocas multiculturais. Um pouco dessa aproximação entre mundos pode ser percebida no trabalho de Aline de Lima, maranhense que impulsionou sua carreira em Paris. Segundo CD da trajetória dessa artista, que carrega a habilidade de saber integrar culturas (leia-se aqui principalmente a brasileira e a francesa), Açaí se traduz numa miscelânea de visões de mundo apreendidas pela cantora, agregando desde sonoridades típicas do Nordeste brasileiro, na faixa O Solar de Catirina, até um baião franco-brasileiro em Renda Minha / Mulher Rendeira.


Qualidade e apuro na seleção do repertório existem de sobra no disco. Há beleza e intensidade no equilíbrio entre os apelos percussivos e a letra de Amor com Solidão. Noutro momento, Ladeira da Preguiça (composição de Gilberto Gil) aparece pontuada pela primorosa voz de Aline em meio a um arranjo preciso. Ainda é possível destacar a bossa que contorna a melodia sensível de Razão de Sofrer e as veias poéticas que atravessam os acordes suaves de Adeus Solidão, canção que carrega em si o recitar de Horizontes, poema de Fernando Pessoa. Aline assina a produção do disco juntamente com o músico, arranjador e trompetista Jun Miyake, famoso pela sua representatividade no jazz americano e japonês. Açaí pode ser traduzido também como uma espécie de resgate da cantora na busca de suas raízes nunca esquecidas. E tudo parece flutuar por sobre o canto impregnado de coisas que povoam uma existência. Por certo, as imagens que ficam exalam o teor sublime daquilo que importa aos ouvidos reter.













Foto: Ozias Filho













JANELA POÉTICA (III)





SAGRAÇÃO DAS DESPEDIDAS


Alexandre Bonafim





V



Desnudo-me nessas águas, nas palavras

sussurradas pela sombra dos anjos.

Visto a primeira luz da minha vida

e inauguro o casto vôo das andorinhas.

Costuro na pele uma fábula de mel,

um rito de pólen e, com a mansidão

dos rebanhos ao vento, com a calmaria

dos cordeiros serenos, refaço-me inteiro;

reergo-me de uma solidão sem pátria

e sem origem. Desnudado pela inocência

de todos esses gestos, preparo o trigo

e o vinho para a anunciação da tua chegada.







(Alexandre Bonafim é poeta, contista e ensaísta. Nasceu em Belo Horizonte, mas passou a maior parte da vida pelas terras do estado de São Paulo. É eternamente mineiro em exílio, mineiro nas raízes da vida. É mestre em literatura brasileira. Defendeu a seguinte dissertação: "A graça poética do instante: poesia e memória nas crônicas de Rubem Braga". Atualmente é doutorando pela USP, em literatura portuguesa. Defenderá a seguinte tese: "O silencioso acorde dos Deuses: o sagrado na poesia de Dora Ferreira da Silva e de Sophia de Melo Breyner Andresen")













Foto: Ozias Filho













POR UM TRIZ


Gerusa Leal




- Você sabia?, ouvi dizer que tem um problema de pele, não pode sair no sol em trajes de banho mesmo com protetor solar.


- Só sai à noite. Quem já viu diz que beleza é o que não lhe falta.


Achava graça nas fantasias que a criatura despertava no imaginário de todos. Trazia o corpo vestido por blusão sobre calças compridas, sombreiro enorme cobrindo a cabeça. Segurava as abas sob o queixo com uma das mãos escondendo até o rosto. Quando passava caminhando pela praia, as expressões variavam entre incrédulas, curiosas e divertidas. Alguém que surgia no meio de biquínis e sungas tão coberto, chamava a atenção. Um despir-se às avessas.


- Estranho se vestir assim para andar na praia, não?


- Não é que é mesmo?


De repente a figura mudou o trajeto em direção à avenida beira-mar. Diante da possibilidade de um fato novo, diminuí o passo. Atravessou a rua. Entrou em prédio de apartamentos de classe média. Descobrir onde morava foi espécie de desencanto, não era a vivenda excêntrica e misteriosa que a aparência inusitada sugeria.


Mesmo assim, insinuando em meu espírito a idéia de procurar saber mais a respeito, uma voz em tom de cumplicidade adolescente sugeria aproveitar o impulso do momento.


Prestes a fazer papel de idiota, entre a curiosidade e o medo do vexame, era agora ou nunca. Se hesitasse um instante que fosse perderia a coragem.


- E aí, cara. Tudo bem?


- Como Deus quer.


- Entrou uma pessoa aqui ainda agora. Sabe por que anda na praia toda encoberta daquele jeito?


Enquanto subia da areia para o calçadão tentando recobrar a sensatez, vi que o porteiro não estava sozinho. Diante da guarita alguém conversava com ele.


Os dois olharam em minha direção, interrompendo a conversa, quando passei pela portaria seguindo em frente, a dignidade preservada.


Por um triz.




(Gerusa Leal é uma escritora entre o conto e o poema. Psicóloga de formação, vivendo, desde sempre, uma relação de puro fetiche com esse objeto lúdico/erótico/filosófico/estético chamado livro, a pernambucana, recifense, atualmente reside em Olinda. Tem escritos publicados em pelo menos dez coletâneas, alguns até premiados, mas seu primeiro livro-solo, "Versilêncios", prêmio Edmir Domingues de Poesia 2007 da Academia Pernambucana de Letras, só deve ser lançado no comecinho do ano que vem)







Foto: Ozias Filho











JANELA POÉTICA (IV)




TRAVESSIAS


Fabrício Brandão


Para Vicente Franz Cecim




outrora falamos de ventos

desses que sussurram idiomas estranhos

apontando espectros

na carne exposta duma memória que flutua


pela sala nostálgica ao lado

aguardam-nos signos irmãos

fontes renováveis da memória incansável

dos dias que atravessamos sobre águas


tantas vontades de abrigar o uno

ecoam agora por essas alamedas brancas

donde percebemos aquela mesma árvore

movimentando-se sutilmente ante nossos olhos despertos


no sopro contínuo desse caminho

somos o próprio corpo das escrituras vivas

tocamos o solo com o afã das escutas serenas

para depois nos reunirmos num mesmo homem











Foto: Ozias Filho













PEQUENA SABATINA AO ARTISTA


Por Fabrício Brandão





Algum tempo atrás, há precisamente três edições, a nossa busca por novos caminhos musicais nos revelou uma grata surpresa. Naquela Vigésima Segunda Leva, estivemos frente a frente com a confirmação de que a nossa riqueza cultural é algo patente e renovadora. De fato, não necessitamos rigorosamente de manifestações que possam sugerir supostos vanguardismos quando existe gente que sabe se utilizar dos recursos palpáveis. Inegavelmente, as referências de peso nunca deixarão de se refletir nas mentes e no trabalho tanto de artistas quanto dos apreciadores da música. Para quem se presta ao ofício de pesquisar e sentir atentamente as novas sonoridades que se apresentam aos nossos ouvidos, fica a complexa tarefa de pontuar os destaques em meio a um fértil terreno a se espalhar pela nossa continental nação.


Recorrentemente e em cada uma dessas descobertas, chega a ser impressionante a quantidade de expressões oriundas de Pernambuco. Sem dúvida alguma, é interessante notar a coexistência de estilos que habita aquele estado, revelando talentos diferenciados e derivados das mais variadas vertentes. Nesse contexto, conhecemos o trabalho de Piero Bianchi e Ricardo Chacon, através do Terra Papagali Coffee Shop, primeiro disco inteiramente autoral desses jovens e talentosos músicos. Na ocasião, chamava atenção o apuro musical com que os dois pernambucanos muniam seu trabalho, sobretudo pelo fato de terem promovido uma verdadeira incursão nas raízes de nossa MPB. Acostumados a se apresentar na noite recifense com a banda Nós4, grupo com o qual já gravaram um CD (Innatura) e dois DVDs (Nós4 ao vivo na praia de Maracaipe / Nós4 - Somos Brasileiros), Piero e Ricardo ousaram construir um projeto cuja veia maior é a sensibilidade de lidar com temas tão impregnados de brasilidade.


De forma bastante acolhedora e simpática, Piero e Ricardo receberam a Diversos Afins para uma rápida conversa sobre aquilo que sabem fazer de melhor: música. Mais do que as suas impressões acerca daquilo que vivenciaram na carreira até hoje, fica o registro de um olhar todo especial voltado para o teor sublime de um Brasil que, mesmo eivado de contradições e desgastes, sustenta permanentemente o trunfo de um potencial criativo renovável.






Ricardo Chacon e Piero Bianchi
Foto: Helder Miguel





DA - Desde o Nós4, as origens de vocês já revelam, através das canções, uma atmosfera sensível e muito ligada a uma pesquisa forte. De onde vieram os primeiros impulsos para que vocês trilhassem o caminho musical?


RICARDO CHACON - Os meus impulsos vieram logo cedo, ainda criança, influência dos meus pais, que costumavam ser os cantores das farras que faziam. Em reuniões de minha família, era comum rolar essas "farras", ao som de muito choro, marcha de bloco (frevo cantado por coral de vozes feminino), serestas e até boleros. Minha mãe costumava cantar uma música chamada "Ave Maria no Morro", e eu, junto com toda família participava nos coros, sempre ousando numa terça, para mostrar que também sabia cantar.

PIERO BIANCHI - Para ser bem honesto, até hoje não sei dizer o que me despertou para a música. Meu pai tinha um bom acervo de discos em casa e acredito que isso tenha contribuído muito, mas, quando tinha uns 11 ou 12 anos, eu cismei que queria aprender piano. Não vim de uma família tradicional de músicos, como Ricardo, mas, muitos anos depois, quando comecei a aprender piano, descobri que minha bisavó por parte de pai foi uma grande pianista concertista em Milão (Itália).


DA - Tocar na noite para muitos é o começo de uma grande travessia até que se chegue num lugar, digamos assim, mais sólido. Como é que funciona esse jogo de expectativas na cabeça de vocês?


RICARDO CHACON - Realmente, tocar na noite é o começo, uma oportunidade de viver num meio de músicos, aprendendo como tudo funciona, todas essas dificuldades. Para mim, o Terra Papagali marca os primeiros passos em busca desse lugar mais sólido. Sei que levará tempo para haver essa tal transição, talvez o suficiente para continuar a criar novos trabalhos.


DA - Pernambuco se afigura como um verdadeiro celeiro de artistas dotados de muita qualidade musical. Que tipo de relação vocês estabelecem com essa estrutura diversificada de manifestações? As trocas de idéias circulam facilmente?


RICARDO CHACON - Em Pernambuco às vezes "o bonito é o feio". Isso acontece por uma razão social em que o bonito é quase sempre relacionado ao "ser playboy". Portanto, a nossa crítica musical local é quase toda voltada para um cenário alternativo. Ignora o Axé comercial da Bahia, muito freqüentado pelos verdadeiros playboys da cidade. Depois do Movimento Mangue, ainda não surgiu nada diferente. Mas o movimento fortaleceu a idéia de que "reconstruir o passado é uma evolução musical". Temos a influência, sim, de tudo que nos rodeia, inclusive do mangue, mas adoramos também Alceu e Lenine. No mais, passaria a entrevista inteira tentando falar do que acontece em Pernambuco hoje em relação a novas bandas. Por aqui está fervendo e tem muita gente boa desconhecida!

PIERO BIANCHI - Essa coisa toda da internet tem facilitado muito a troca de idéias e a quebra de qualquer possível preconceito. Hoje, as bandas, artistas e compositores de todo lugar podem se conhecer e conversar facilmente. O resultado disso são novos festivais de música, novos shows, novas músicas e por aí vai...


DA - Quem ouve o Terra Papagali Coffee Shop percebe que pulsa ali uma vontade intensa de dar voz própria aos rumos perseguidos por vocês. De que modo o disco começou a ganhar corpo?


RICARDO CHACON - A intenção sempre foi achar a nossa música original, nos achar na nossa estória de criar, traçando nossa caminhada, dentro das nossas raízes, as quais idolatramos, e tudo de forma não forçada, limpa e contemporânea, resgatando o lado nativo e verdadeiro do Brasil. Esse lado às vezes marginalizado, mas único e nosso, tão bem cantado por Vinícius e Baden nos seus afro sambas, foi o que impulsionou toda a idéia do disco.

PIERO BIANCHI – Fizemos as músicas do disco num período de 2 anos. Durante esse tempo, só tínhamos as músicas gravadas em voz e piano ou violão. O tempo passava e a gente começava a imaginar como ficariam as músicas arranjadas. A idéia de gravar o disco, então, veio mesmo daí: que as canções não ficassem apenas na imaginação.






Piero e Ricardo em show no Bar do Tom, RJ





DA - Amor e natureza são temas que dividem espaços nesse equilíbrio sugerido pelas paisagens humanas visitadas no Terra Papagali. Essas imagens poéticas sublimes são palavra de ordem para renovar os olhares sobre o que vivemos?


RICARDO CHACON - Sim. Um olhar nativo do Brasil, do Brasil que eu costumava encontrar na literatura de Monteiro Lobato e de Vinícius de Moraes. Uma imagem pura que não condiz atualmente com a realidade, mas que ajuda de alguma forma a resgatar a força de uma cultura tão rica, primordial nos tempos de hoje nessa necessidade de mais educação e cultura.

DA - Um dos pontos fortes do disco é o diálogo preciso entre os arranjos e as composições. Como é que se deu esse processo criativo?


PIERO BIANCHI - Sabe que nem sei te explicar direito... A gente às vezes conversava sobre uns arranjos, rítmicas etc. e por alguma razão estávamos pensando mais ou menos as mesmas coisas. Fora isso, na hora da produção musical, ambos tivemos total liberdade de trabalhar e interagir.


DA - Nesse trabalho onde as raízes de nossa MPB têm lugar de destaque, são perceptíveis as influências de nomes como, por exemplo, os de Tom Jobim e Edu Lobo. Há outras tantas escutas percorrendo as intenções de vocês?

RICARDO CHACON - Os afro sambas de Baden e Vinícius; Lenine e Suzano com seu "Olho de peixe".


PIERO BIANCHI - Muitas, muitas mesmo. Mas a obra desses dois é uma coisa incrível.


DA - Terra Papagali reuniu as participações de gente de talento inquestionável como a cantora pernambucana Isaar França e a francesa Camille Baroiller. O diálogo com outros artistas é algo freqüente nas andanças sonoras de vocês?


RICARDO CHACON - Importantíssimo. A maior riqueza do disco eu considero que venha das participações mais que especiais que conseguimos juntar. O diálogo com outros artistas faz parte da nossa maneira de trabalhar. Aprendemos muito sempre.


PIERO BIANCHI - Esse diálogo é fantástico. Acredito que é sempre uma experiência para ambos os lados.


DA - Como avaliam hoje a repercussão do trabalho?


RICARDO CHACON - Estou muito feliz com o resultado. Mesmo ainda não sendo tão conhecido, a satisfação é muito grande.


PIERO BIANCHI - Tenho que dizer que estou contente, mas acho que ainda estamos no começo do processo de divulgação deste trabalho.


DA - Já é possível perceber os ventos que anunciam um futuro?


RICARDO CHACON - Ainda é cedo para se falar qualquer coisa. Esse disco é apenas o começo. Já estamos trabalhando o próximo, mas isso fica para a próxima entrevista!











Foto: Ozias Filho














JANELA POÉTICA (V)




DO CORPO DE UMA MULHER, ALGO É VOZ


Wesley Peres




Há uma química de mãos em seus olhos

eles arestam meu corpo

e povoam de relâmpagos

cada um dos meus lábios,

estes, que se freqüentam de silêncios

em dilatação no espaço escandido

por um tempo, ao mesmo tempo,

contínuo e descontínuo.

Morri três vezes neste dia

de lábios que se calam

por sonorização de cômodos

do corpo que por comodidade

chamo de vísceras

­-chego a pensar que é mesmo

entre elas que, de seus olhos,

vêm os relâmpagos de calar

lábios e produzir,

no corpo,

arestas sutis

como o instantezerodeumundo.






(Wesley Peres é escritor e psicanalista. Mora em Catalão – GO. Autor do romance CASA ENTRE VÉRTEBRAS, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006. São dele os livros: PALIMPSESTOS (poemas), vencedor da Coleção Vertentes cegraf/UFG 2007, RIO REVOANDO (poemas) USP/COM-ARTE 2003; ÁGUA ANÔNIMA (poemas), vencedor da Bolsa Cora Coralina 2001, publicado em 2002 pela AGEPEL)












DROPS DA SÉTIMA ARTE


Por Fabrício Brandão



Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness). Brasil/Canadá/Japão. 2008.











(...) Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem. Através do arremate dessas reflexões derradeiras do romance de José Saramago, Ensaio Sobre a Cegueira (Companhia das Letras), somos levados ao ponto crucial de toda a sua narrativa – qual seja estarmos envoltos nas traições recorrentes de nosso olhar. O trecho do livro é deveras emblemático, consideremos, mas nada disso é menos importante do que a densidade com a qual o autor constrói toda uma obra, equacionando conflitos tão inerentes à natureza humana quando o alento que vem da visão aparente de um mundo não mais serve como guia básico dos mais diferentes seres. A missão de se ter olhos quando todos mais não os têm até pareceria dádiva fácil de ser conduzida, não fosse a atrofia presente em tempos de suposta visão plena de toda uma coletividade. Bom, mas qual seria a razão para começar a exposição acerca do filme homônimo do diretor brasileiro Fernando Meirelles com tais considerações da ótica saramaguiana?


De certo, estamos diante de duas linguagens que tentam se aproximar por aquilo que as distingue naturalmente. O dever de síntese presente numa obra cinematográfica faz com que a tarefa do cineasta, não raro, seja a de conter um universo de fatos imperativos num pequeno compartimento onde uma narrativa precisa explodir e vingar. Por trás das linhas que agora escrevo, há um branco imperceptível que serve como pano de fundo para impedir que letras e linhas fiquem à deriva, implorando pelo resgate imediato de um fluxo de idéias salvadoras. Esse mesmo branco é o elemento metafórico utilizado no filme Blindness para a representação clara da ausência de visão dos seus personagens. Para quem não leu o livro de Saramago, importa saber que, durante o transcorrer do cotidiano apressado de uma grande cidade, um misterioso caso de cegueira branca começa a disseminar um alerta entre a população, passando em seguida a se tornar algo predominante, devorando a todos mais. Antes mesmo que o fenômeno tome conta de todas as vidas ali presentes, o poder público se encarrega de confinar os primeiros casos ao ambiente hostil de um manicômio desocupado, na tentativa de conter a propagação do “mal branco”. Nesse ínterim, apenas uma das pessoas não perdeu a visão, tornando-se uma espécie de prisioneira silenciosa dos demais. E é justamente nesse cenário de quarentena que irão se formar as principais bases da trama. As cenas, aclaradas pela iluminação provocadora do filme, vão percorrer uma sucessão de acontecimentos na qual a incapacidade das pessoas de perceberem a si mesmas suplanta a própria ausência de visão. O conceito de solidariedade que se opera no grupo é justamente o contrário daquilo que se esperaria de uma situação trágica. Somem-se a isso doses incômodas de embates deflorados pelos mais torpes sentimentos e instintos humanos a atropelar quaisquer noções mínimas de ética e dignidade.


O Ensaio Sobre a Cegueira de Meirelles não espetaculariza o caos instalado entre os personagens. Ao contrário, faz com que a carga dramática dos confrontos deixe clara a existência de uma tênue linha entre bons e maus (se é que é possível considerar tal distinção), submetendo todos ao jugo irracional de uma ordem social distorcida. E a tônica desses conflitos responde pelo nome de barbárie, denotando traços de um realismo-naturalista. Com locações em São Paulo, Toronto e Montevidéu, o filme conta com atuações valiosas de gente como Julianne Moore, Mark Ruffalo, Danny Glover e Gael García Bernal.


Não é uma obra fácil de ser digerida, dadas as complexidades presentes na matriz de Saramago. Talvez, por essa dificuldade de apreensão, Blindness não tenha arrebanhado tantos simpatizantes quando participou do 61º Festival de Cinema de Cannes. De fato, trata-se de uma adaptação muito melindrosa para ser dramatizada, pois a metáfora abundante na obra literária requer recursos que nem sempre são utilizados adequadamente na grande tela. Evitar comparações parece ser algo mais razoável para se considerar por aqui. Em tempos de pressa, individualismo e indiferença, importa-nos bem mais não nos deixarmos sabotar pelos sinais de um óbvio que nos rouba as mais básicas percepções.















Foto: Ozias Filho













JANELA POÉTICA (VI)




ABISMO PARTICULAR


Leila Andrade




em muitos cantos havemos de pernoitar

nossos sonhos gastos pelas torturas mundanas

morrem desobedientes e solitários os passos

que deixamos em terra gravados nas horas


a força que nos move reside no cerne da dor,

no motivo cambaleante de um passado

trazido por tantas mãos e

refletido em olhares certamente inimigos


eis que assim se apresenta o abismo

em idas e vindas, dias e dias

por caminhos de qualquer vida que resista

à beira de uma morte impensada, mas definitiva












Foto: Ozias Filho
















APERITIVO DA PALAVRA: TRÊS LEITURAS


Por André de Leones





1. Em se tratando de sexo, tudo já foi feito e muito já foi dito. Ou não. Seja como for, um livro como História do Olho, de George Bataille, permanece assombroso. Conforme entrega Barthes, História do Olho é a história não desta ou daquela personagem. Não. História do Olho é a história de um objeto. Entenda isso como quiser. E leia o livro quando puder.


2. Cioran é outro. Outro o quê? Há uma idéia equivocada a respeito dele, não pelo que ele escreveu, mas em função de certa categoria de pessoas que lêem o que ele escreveu. Tem muito boçal por aí que lê Cioran e cita Cioran. O mesmo acontece com Nietzsche, não? Então, de repente, há quem diga que Cioran é algo como “angústia de butique” ou coisa parecida. Bobagem. “Quando não se pode livrar-se de si mesmo, deleita-se devorando-se.” Cioran tem mais timing do que Lenny Bruce. Dependendo de como você seja ou esteja, ler os livros dele (sugiro que você comece pelo Breviário da Decomposição, encontrável em sebos) pode ser hilariante ou desesperador. Eu, por acaso, sempre rio muito. Ele diz tudo o que eu quero e preciso ouvir.


1.1 Citação, História do Olho: “Ela queria se masturbar dentro do armário e suplicava que a deixássemos só”.


3. E ainda quero falar sobre um terceiro livro, o bacaníssimo Dias de Faulkner, de Antônio Dutra. Em 1954, William Faulkner esteve no Brasil. Dutra ficcionaliza essa visita. Livros sobre escritores meio que já encheram o saco, mas o de Dutra é diferente. Diferente como? Por quê? Porque Dutra. O cara escreve muito bem. Ele quebra a pontuação todinha, por exemplo. Quebra as nossas expectativas, por assim dizer. Faz com que o livro tenha uma levada única, envolvente, imprevisível. Onde eu queria ponto, havia vírgula. Onde eu queria vírgula, o abismo. Ele desce, mergulha, e leva o leitor consigo. Sabe aquele livro que você mal termina de ler e já começa a reler? Pois é. Dias de Faulkner, Antônio Dutra. Imprensa Nacional do Estado de São Paulo. Eu recomendo.


1.2/2.1 Ah, sim: História do Olho foi lançado pela Cosac & Naify. Breviário da Decomposição, pela Rocco.


3.1 O primeiríssimo romance de Antônio Dutra, Matacavalos (acho que é isso mesmo), permanece inédito. Ele ganhou uma bolsa da oficina Veredas da Literatura na segunda FLIP, mas a editora que lançaria o romance deu para trás. Espero ainda ter a oportunidade de ler esse livro.







(André de Leones é autor do romance “Hoje está um dia morto” (Record))












Foto: Ozias Filho













JANELA POÉTICA (VII)






CÉU


Jacob Goldberg



Em que dimensão habita o morto

Quando, no sonho, vive autônomo

(independente do sonhador), embora

acordado, o sonhador, esquecido e

pretensioso, se imagina

regente do seu sonho?





(Jacob Pinheiro Goldberg poderia ter nascido em outro continente, se não fossem, quem sabe, seus poemas que necessitavam que ele nascesse no Brasil. Filho de imigrantes, familiarizado desde cedo com a sina e a magia do exílio, fixa sua morada em língua portuguesa do solo fértil brasileiro, seguindo, ao mesmo tempo, uma vida errante, nunca acomodada, de psicólogo, advogado, assistente social e poeta, sempre procurando compreender melhor o outro e a si mesmo)








OUVIDOS ABERTOS (II)


Por Fabrício Brandão




VETUSTA MORLA – UM DÍA EN EL MUNDO









Cada vez que tentamos captar ou até mesmo entender tudo aquilo que se passa ao redor de nós mesmos, parece ficar aquela sensação permanente de uma multidão de coisas desconhecidas ou despercebidas. Sob uma certa miopia das horas, há um espelho onde buscamos a face perdida de nossos desejos. Inventados ou não, estes últimos são a curiosa garantia de que pouco vale atravessar uma existência sem que se conceda um altar especial para cultuarmos sonhos. E depois são esperas, pessoas, gestos, equívocos, feridas, instintos traidores, insônias, paixões e medos que tecem as escrituras confusas de tudo o que pode conter uma vida a respirar por olhos e sentidos outros. Por ouvir e perceber as melodias dos espanhóis da Vetusta Morla, é possível flagrar os tais lugares onde palavras carregadas de sentimentos representam a matriz de imagens tão íntimas de nossas humanidades. Segundo CD da carreira da banda, Un Día En El Mundo é um trabalho que agrega poesia e sensibilidade ao rock, impregnando as canções com um certo toque existencialista.


Além da qualidade das composições, chamam atenção no disco os recursos melódicos que ambientam toda a atmosfera desenhada pelos arranjos. Quiçá seja possível considerar a energia presente nesse belo trabalho como sendo a de um pop rock bem ao estilo lírico de expressão. Lírico, porém isento de pieguices e reflexões vazias tão comuns e que costumam vagar pelos espaços banalizados do mercado fonográfico. À medida que escutamos faixas como Autocrítica, Un Día En El Mundo, Pequeño Desastre Animal , Año Nuevo e Al Respirar podemos perceber os impulsos que tornam o disco algo dotado de sentido e conteúdo. Em alguns momentos, uma certa influência ao modo Radiohead se deixa exalar pelos contornos da musicalidade do Vetusta Morla. Guitarras, teclados e vocais vão delineando o caminho sonoro deles, tudo sem pretensões inovadoras, mas com profundidade. Depois, é como dizem as linhas de Rey Sol: “Descubrimos que al final, las palabras que no existen nos pueden salvar”.















Foto: Ozias Filho













GUARDA CHUVA


Daniela Mendes


para Ana Cláudia






Esticou bem a língua para o céu acertar uma gota e irrigar suas papilas responsáveis pelo doce. Todas as nuvens em equipe tentaram, mas nem assim tinham a mira tão boa de outrora. Enfiou cinco dedos num bolso e mais quatro n'outro, como se um polegar esquecido fosse natural. E com a canela empurrando a saia comprida fez de conta que podia flutuar… Mas eram passos, bem lembrados pelo pano que pesou, a pele que enrugou e o cabelo que minguou. Às vezes uma chuva era apenas uma chuva, carregando todo lixo da rua para dentro da sandália. Ou fazendo a casa ficar mais longe como um demônio às vezes fica manipulando o espaço. Não! A verdade é que era apenas uma chuva e o mais que poderia acontecer era a mulher ficar resfriada ou humilhada. Não! Já na porta de casa deu uma última olhada no rio de dejetos que rolava no asfalto. Tão logo as nuvens desfizessem as mãos dadas, o rio seria de novo apenas a mesma estrada limpa. Já se escorrendo dentro da sala, um Deus lá fora parecia bravo. Seu coração acelerou como se tivesse para onde correr. Foi para cozinha e tomou um copo d'água. Demorasse mais um pouco, morria de sede.






(Daniela Mendes, mais de trinta anos de leitura, verborragia que não se estanca, sempre teve necessidade de fugir do mundo real. Descobriu, graças ao virtual dos tempos de internet, que carregar alguém junto era muito mais divertido. Desde então, tem que se segurar pra não criar e destruir blogs e mais blogs. Já foi Colombina, no “Candongas não Fazem Festa”, e, depois de perder totalmente a vergonha na cara, resolveu abrir o Livraria das Obras Inéditas. Depois que descobriu que aconselhar amigas como num dicionário de soluções também era um exercício poético, resolveu criar o Verbetes. Também faz parte da revista de contos Histórias Possíveis e adora trocar correspondências)














Foto: Ozias Filho















* Numa observação concentrada em torno de feições humanas registradas na capital francesa, o fotógrafo Ozias Filho promove uma varredura do olhar sobre as mais diferentes expressões que povoam a Cidade Luz. Sejam naturais do lugar, imigrantes ou meros turistas, importa à série Algures em Paris denotar nuances despercebidas das gentes em meio ao notório impacto plástico daquela metrópole.


Ozias nasceu no Rio de Janeiro, é formado em Jornalismo e em Fotografia, e pós-graduado em Edição, pela Universidade Católica Portuguesa, residindo em Portugal há 17 anos. É, desde 1999, diretor da sucursal da Editora Vozes em Portugal. Atuou em jornais e revistas portuguesas. Lançou em 2001, pela Ed. Alma Azul o livro Poemas do Dilúvio; idealizou e protagonizou, entre 2002 e 2004, na Casa da América Latina, os projetos: Uma Hora Com os Poetas, Noites em Pasárgada e Neruda com Amor, tendo publicado outras obras. Suas fotos ilustram as capas de livros brasileiros e portugueses. Muito recentemente, lançou em Portugal o livro Santa Cruz, pela Ed. LivrodoDia, o seu primeiro trabalho inteiramente dedicado à fotografia, com poemas de Luiz Filipe Cristóvão.




 
publicado por Fabrício Brandão
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