29 de jul. de 2009,17:30
TRIGÉSIMA QUINTA LEVA



Foto: Alexandre Fonseca






CICERONEANDO



Antes mesmo que pudéssemos estar aqui convivendo com nossos ecos a se dispersarem por todas as partes, sempre existiu o primeiro senhor de todas as horas – o silêncio. Alguns já o cantaram em prosa e verso, percebendo nele uma fonte complexa e misteriosa de saberes. Até pode parecer que necessitemos com urgência atirar nossa verborragia para todas as direções, evocando as atenções para o que pode soar além de nossas óbvias falas. Outros podem perceber a torrente de palavras como um modo de afugentar-se da solidão intensa e cortante das horas. No entanto, o desacelerar dos ímpetos é capaz de nos revelar que há vida abundante e esclarecedora no silêncio íntimo e pessoal de cada um de nós. A cada Leva que se anuncia, pulsa uma descoberta do mundo, tal como apregoava uma visceral Clarice Lispector. Como num jogo de coincidências inimagináveis, as pessoas que por aqui passam agora tecem os fios de uma cumplicidade inerente ao ser humano: o percurso pelos temas recorrentes da alma. Há o compartilhar de paisagens intimistas nas vozes poéticas de Mara Faturi, André de Freitas Sobrinho, Graça Pires, Miguel Ángel Muñoz, Rafael Nolli, Nestor Lampros e Alexandre Bonafim. Pelas escutas em torno das falas do artista plástico Sérgio Lucena, os propósitos da arte assumem um caráter do olhar sublime sobre a essência da qual somos realmente feitos. Em Gerusa Leal e Valéria Freitas, as linhas abrigam os fragmentos nossos que sobraram depois da grande explosão. Na crônica de Tekka Whitman, a memória é uma senhora cuja eternidade sempre rondou desavisada sob o sol. Sentimentos humanos contraditórios habitam a tônica da resenha cinéfila de Larissa Mendes. Tudo aqui é devidamente compartilhado com as imagens poéticas captadas pelas sensíveis lentes do fotógrafo Alexandre Fonseca, cujo registro nos assoma pelos recortes humanos que transcendem o real. Eivada de silêncio, luzes e verbos uma Trigésima Quinta Leva de expressões conduz os passos adiante.




*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.










JANELA POÉTICA (I)



ANDANÇAS


Mara Faturi



Sabe aqueles dias mornos

de calçadas em visgo

de árvores em silêncio

e lages em folhas?


...é nesses dias que eu ameaço chover

mas depois recolho pétalas e vento

caramujo lento

sigo a trilha

num quase gozo.




(Mara Faturi é publicitária e Especialista em Psicologia na Comunicação/ PUCRS. Acadêmica em Letras- Português e Literatura pela Universidade Castelo Branco/EAD. Participou da “Antologia Poesia e Prosa Casa de Cultura Mário Quintana /IEL, 1994. Foi selecionada no Concurso de poesias “Expresso das letras” edição 2007 pela Editora Revolução cultural, publicado em Junho 2008. Classificou-se em 2º lugar no 4º Concurso Literário Mário Quintana 2008 / Sintrajufe. Tem o Livro “Andanças” publicado pela Editora Porto Poesia (2009), de Porto Alegre)








Foto: Alexandre Fonseca








do you know where’s your love, all mighty?


Valéria Freitas



Deixaria um bilhete. Curto. O mais curto possível. Algo como "estão por aí, as suas chaves". Nada disso. Precisava de uma frase ainda mais curta e tão cortante quanto o caso entre eles. Acabara e ponto. Era preciso criar o tal bilhete curto. Precisava inventar o que escrever.


Circulou pelo apartamento com as chaves nas mãos. Olhou os detalhes do quadro de um pintor desconhecido que detestara. Sentou-se no chão e rastreou... Até perceber solidão ao pé da mesinha onde os livros preferidos dele sempre ficavam largados. Caminhou até lá e deixou as chaves sobre o primeiro livro. Memoria de mis putas tristes.




(Valéria Freitas é original do Rio de Janeiro; tão carioca que não por acaso, nasceu no dia de São Sebastião. Jornalista, artista plástica, leitora, escritora, tudo isso é vício. Irreparável e para sempre. Tem um livro pronto esperando a tal da "qualquer hora dessas". Exercita-se em Curvas Concretos Quadris e com a Diversos Afins, ensaia saltos e oferece a outra face)









Foto: Alexandre Fonseca







JANELA POÉTICA (II)



Não sei por que motivo


Graça Pires



Às vezes
não sei por que motivo
afogo o olhar
em trágicos silêncios.
Para encontrar a luz
me bastava enfrentar
a noite, porque possuo
nos olhos o apelo
errante das sombras.
Pequenas traições
tatuadas na pele
são apenas pretextos
para disfarçar os medos.
Um remorso
germinando na lembrança
devolve-me o temor
de múltiplas solidões.



(Graça Pires nasceu numa cidade litoral portuguesa – a Figueira da Foz – onde aprendeu a amar o mar e os barcos e com eles as palavras envoltas na emoção de viver. É poeta e sabe que só a poesia pode absolvê-la de todas as fragilidades)







OUVIDOS ABERTOS (I)


Por Fabrício Brandão



MARIA GADÚ – MARIA GADÚ






Na eterna trajetória de perseguir os ventos do saber e do sabor da vida, não há nada de mais recompensador do que percebermos as cores espraiadas nos horizontes dos novos avisos. Os sinais vão se delineando nos entreatos de nossos sopros e ações, provando que é possível respirarmos ares de originalidade e emoção de modo especial e intenso. Quem acha que todas as coisas já foram exaustivamente ditas pelos cantos polifônicos do mundo, é obrigado a amansar as falas vãs e precipitadas e ao menos se deixar ouvir através do outro. E esse outro que agora surge, se agiganta e se impõe com personalidade, assume proporções marcantes no canto de Maria Gadú. Com apenas 22 anos de idade, a moça paulista cativa de pronto pela capacidade de tomar conta dos espaços através da voz e da interpretação. O disco em questão é o trabalho de estreia da artista, que arrebata as atenções por apresentar um álbum predominantemente autoral.


O cd desfila com propriedade pelo fértil terreno da MPB, mesclando elementos de samba, choro e pop. Entre letras, voz e arranjos muito bem equacionados, o resultado agrada sobretudo pela pegada genuína, apoiada num texto que exala um ambiente íntimo e delicado. Mesmo se tratando de um disco completo, cabe assinalar a importância que canções como Altar Particular, Dona Cila, Shimbalaiê, Tudo Diferente, Lounge e A História de Lilly Braun (Chico e Edu Lobo) conferem ao álbum. Não menos importante e de modo surpreendente, as escutas ainda se deparam com Baba, música propalada aos quatro cantos por Kelly Key e que aqui ganha corpo e alma completamente renovados. Já dizia o poetinha Vinicius que a vida é a arte do encontro. Pois, então, seladas estão as marcas valiosas que a música inscreve em nossas incertas sinas por meio dessas reuniões humanas que nos ofertam os mais sublimes sentimentos. “Me olha de onde estiver/ que eu vou te mostrar que eu tô pronta/me colha madura do pé”, prenuncia a voz suave dessa alma que veio pra ficar.








Foto: Alexandre Fonseca








JANELA POÉTICA (III)



ORAÇÃO


Nestor Lampros



Se eu não visse

acreditaria,

o vento, o próprio vento

ora,

ajoelhando-se nos seus joelhos

de vento.


Sopra e a brisa

do seu corpo passado

no verdor de sua alma em revolta.

XXXX Um céu e um beijo de ar,

XXXX no centro do coração, um lamento.

A quem ora? A si mesmo e todos.

XXXE a nossa alma vazia no sono em Deus.


O vento beija em seu templo

a oração dos aflitos e recorre

à suposição fundada

em ar.

E nos tufões recorre às cinzas

dos vulcões seus claros incensos.


Tudo para mostrar-nos,

que a vida, leve peso,

XXX é o movimento de um certo tipo de tempo,

XXX gasto pelo beijo das mãos, juntas, e vazias,

em oração.




(Sou arte-educador, poeta, artista plástico e quadrinhista. Desde o começo dos tempos venho cogitando e aceitei o desafio. Hoje sou poeta. Amanhã tentarei roubar um pouco dos sóis em minha cidade. E queimar a alma idiota das nuvens que não concebem o óbvio: nascer uma segunda vez - termo. Plena chuva do vento/tempo. Em Atibaia, minha textura, meu sal de suores noturnos, minhas vestes de penumbra, meu recolhimento tácito...)








DROPS DA SÉTIMA ARTE


Por Larissa Mendes



Downloading Nancy. Estados Unidos. 2008.






(...) A morte é como sugar oxigênio.

- E a vida?

É como estar presa na casa errada procurando a saída.



Já dizia Caetano Veloso que cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. E se o único prazer de existir só puder ser experimentado através de flagelação e dor?


Downloading Nancy é um filme visceral e gélido. Dirigido pelo sueco Johan Renck (músico e diretor de videoclipes), que se tornou conhecido depois do controverso vídeo Cow – que utiliza closes dos ânus de vacas para fazer um alerta sobre o aquecimento global – não poderia se esperar menos que uma estreia polêmica.


Uma infância de abusos e uma autoestima dilacerada fazem de Nancy (Maria Bello, em tocante atuação) uma mulher deprimida e reclusa, que expõe suas fraquezas apenas em desprezíveis sessões de terapia.


Ela tolera um casamento-cadáver de quinze anos com o empresário Albert (Rufus Sewell), mas considera que nem mesmo o divórcio seja capaz de libertá-la. Fanático por golfe, Albert é um homem insensível e ausente, que trata a esposa como um fantasma.


Sofrendo de tendências suicidas, Nancy é adepta de práticas automutilativas e sadomasoquistas. Seu prazer encontra-se na dor, mas nem mesmo isso o marido é capaz de perceber. Online, ela encontra refúgio na companhia do misterioso Louis (Jason Patric) e parte para uma viagem à Baltimore para firmar um pacto que fizeram.


Baseado em eventos reais, Nancy externa a mesma solidão contemporânea que ronda nossos dias. A priorização de sentimentos virtuais aos reais, a contemplação do uso de drogas, medicamentos e toda a gama de ‘autoengano’ a fim de suprir a depressão em estado bruto. O que ela suplica é uma espécie de eutanásia dos mortos-vivos, em busca da cura de todas suas cicatrizes.


Construída em flashbacks, a narrativa é desvendada pouco a pouco, tal e qual um download de internet. Closes em objetos aparentemente aleatórios ajudam a construir um mosaico das amarguras da personagem título e a fotografia acinzentada completa o panorama glacial do enredo. Denso e impetuoso, Downloading Nancy é capaz de dividir plateias por sua crueza e realismo, ao dialogar com dor e prazer, amor e morte, angústia e redenção.




(Larissa, menina-catarina, é Bacharel em Turismo e Hotelaria, hóspede-cinéfila e turista no mundo das palavras)








Foto: Alexandre Fonseca










JANELA POÉTICA (IV)



CONSTÂNCIA


André de Freitas Sobrinho



Deitamos numa mentira conveniente

em que coloro de dia-a-dia

suas unhas de novidades.

Beijo lembranças úteis

emboloradas na sua língua de cinzeiro.


O abajur e seus dedos;

economia gestual que não remove

as horas contadas do seu copo cheio

no móvel mudo: a sombra

constante da sua imobilidade.




(André de Freitas Sobrinho, também assina Capilé, é organizador do ECO - Performances Poéticas e editor-colaborador do site Texto Território. Tem publicado contos na antologia "23 contam 28" e lançou em parceria com Carolina Barreto o livro de poesias "Dois (Não Pares)". Nasceu no ano 78 em Barra Mansa, na margem sul-fluminense do Rio e reside, atualmente, em Juiz de Fora. E-mail: andrecapile@gmail.com)








Foto: Alexandre Fonseca








PEQUENA SABATINA AO ARTISTA

Por Fabrício Brandão


A primeira visão de um tudo habitava as moradas de um silêncio. Pelos tecidos que escorriam entre as horas, o menino vislumbrava no seu cume predileto o sertão-mundo presente, palpável, concreto e imaginável aos olhos. E sentir tais visões impregnadas na retina trazia-lhe a íntima certeza de que atirar-se à vida poderia ser algo delicado, complexo, porém não menos fascinante. A partir disso, tomava posse do sonho como um aliado ideal da sublime busca ensimesmada em torno dos sinais que percorrem a existência.

Aquele menino-sertão cruzaria os anos futuros carregando obstinadamente os imperativos de seu digno olhar sobre todas as coisas. Pelas alamedas inexplicáveis da arte, tornar-se-ia o homem que, além de perceber a realidade pulsando bem diante de si, mostraria disposição para transcender os signos embalados no caminho da criação. É como se, através de suas telas, Sérgio Lucena nos propusesse a vida surgindo sempre e revelada a cada dia. Desde os primeiros estudos de desenho e pintura em sua João Pessoa, na Paraíba, até as experiências acumuladas com exposições e premiações no Brasil e no exterior, o artista percorreria as trilhas naturais de sua afirmação criativa. Durante todo esse tempo, conheceu pessoas, compartilhou saberes com outros artistas e se alimentou daquilo que, podemos suspeitar, seja o maior propósito de seu trabalho: o mergulho na essência das coisas.

Santos, anjos, profetas, musas, deuses e paisagens, dentre outros temas, unem-se em esforços que estreitam a relação dos homens com seus mais antigos mistérios. Nesse ponto, a obra de Sérgio nos oferta a unidade existencial, a comunhão entre o sagrado e o profano. Homens e deuses são um único ser e o conceito de divindade é cultuado no mais nobre altar da igualdade, algo que pode até nos remeter ao Uno de Plotino. Em meio a tais epifanias, Sérgio Lucena nos concede uma entrevista cujo ponto alto concentra-se nas suas sensíveis impressões em torno do fazer artístico. Nela, o artista desnuda-se e nos revela quão valiosa é a celebração de nossa humana idade.


Sérgio Lucena
Foto: Claudio Wakahara


DA - Suas primeiras visões vêm das reminiscências povoadas pelo vasto e mítico imaginário nordestino. Como foi que tais olhares se fortaleceram em seu íntimo a ponto de motivar a sua arte?

SÉRGIO LUCENA - Minha infância foi marcada pelo sertão, o centro do meu universo, a fazenda de gado e algodão do meu avô materno onde experimentei o real, o leito rochoso onde firmei os pés. Lá existe uma pedra, um imenso granito solitário com aproximadamente trezentos metros de altura. Costumava subir esta pedra para olhar o mundo do alto, para mim aquela visão era, e continua sendo, o lugar sem engano.

O sertão nordestino com seus silêncios, sua alma arcaica, consubstancia uma realidade sem dúvidas. "Viver é muito perigoso", diz Guimarães, como a dizer que a vida só é possível com princípios, com dignidade, valor seminal. Toda a alta cultura nordestina não é outra coisa que a preservação de códigos de conduta. Estruturas essenciais que permitem a vida e criam espaço para o sonho realizador.

O que vi sem que me mostrassem, o que ouvi sem que me dissessem, o que senti sem demonstrar (a metodologia sertaneja de transmissão do que importa), tudo calou fundo em mim até estar pronto para vir à tona.

Sou hoje a pedra da minha infância, a vastidão, o mistério, o arcaico, o espaço cósmico infinito, o não saber, o aceitar. Minha pintura atende unicamente à vida, sua demanda... Minha motivação é estar à altura disto.

DA - Certa feita você afirmou que vida e arte são dois elementos indissociáveis. Por vezes, somos um tanto utópicos quando recriamos nossas existências através dos impulsos artísticos. Essa ideia da reinvenção da vida pode nos afastar ou aproximar da essência das coisas?

SÉRGIO LUCENA - "A vida imita a arte", disse o Oscar Wilde. Eu concordo com esta afirmação. A meu ver, não recriamos nossa existência por meio da arte, entendo que a criamos.

A arte formaliza o real, de maneira que a vida que se manifesta foi antes criada num espaço sutil. A nova realidade consciente se dá pelo fato de ter sido antes elaborada em forma de linguagem, uma estrutura capaz de acessar a percepção e o entendimento humanos. Isto é alta magia.

Neste sentido, nos aproximamos da essência das coisas, pois é de nós mesmos que nos aproximamos. A utopia é o contrário disto, e se reflete claramente na alienação, na dissociação do indivíduo de si mesmo.

Também é do Oscar Wilde o pensamento de que o mistério maior está no que vemos e não no invisível. Todo artista que pode ser chamado grande, o é por sua obra realizada, nunca por suas subjetividades ou idiossincrasias.

O embate do artista é com a esmagadora força de acomodação e alienação exercida pelo mundo contingente, e é a percepção intuitiva em busca dos meios de elaboração e expressão do que é intuído que cria a tensão necessária para a realização da obra.

É natural que o artista conviva com o abutre prometéico, que lhe come o fígado diariamente, mas é o fogo roubado aos Deuses o que interessa de fato. De maneira que a realização objetiva da obra é o meio de passagem da situação utópica para a realidade concreta.

A obra realizada é o portal de acesso à nova consciência. A realidade da obra, portanto estabelece o novo olhar, a nova percepção. Assim, cria-se a vida.

Para mim, certamente, a arte como linguagem é a melhor expressão do essencial, trata-se da linguagem da alma, imediata, completa, pura e espiritual.

Para concluir, digo que a vida não se inventa tampouco se reinventa, a vida se revela ao passo que se nos desvelamos.

DA - Como é que você avalia o papel da crítica de arte feita no Brasil?

SÉRGIO LUCENA - A crítica de arte no Brasil, no âmbito das artes visuais, já há mais de década foi expulsa de seu espaço: os veículos de comunicação. Hoje temos apenas anúncios de eventos e, quando muito, meras opiniões.

Um fato lamentável, causador de imensurável prejuízo ao avanço da reflexão, do aprofundamento das questões da arte e, consequentemente, da diluição do pensamento.

Toda história da arte está respaldada no diálogo artístico, a ausência disto em nosso país é um atraso para a sedimentação da cultura, uma forma espúria de fragilizar nossa identidade.

Curioso é que os próprios artistas participaram deste movimento de extinção da crítica, com uma postura no mínimo leniente, para não dizer subserviente aos interesses do mercado.

Fato é que sem crítica de arte não existe arte. O interlocutor é fundamental para o artista.

DA - O pintor suíço Paul Klee dizia que o papel do artista era o de convencer os outros da veracidade de suas mentiras. De que modo você percebe tal ideia?

SÉRGIO LUCENA - Paul Klee foi um sol radiante, sua luz permanece como um farol de lucidez. Ele não diz, ele sugere, aponta... A única forma de falar do indescritível.

Entendo que esta citação do Klee corresponde ao que tratávamos na segunda pergunta, que vida e arte são indissociáveis.

A arte não se vale da lógica cartesiana, da constatação científica, da confirmação empírica para afirmar seu valor. Logo, para nossos arcaicos padrões de valoração, a arte é uma grande ilusão, uma baita mentira cujo único mérito seria nos distrair, afinal não é fácil lidar ininterruptamente com as coisas "sérias, verídicas e importantes" da vida. Há de haver um tempo para o descanso.

Entretanto, é justo neste espaço de tempo em que a guarda está baixa, visto ser hora de relaxar, que se dá o inimaginável. O sujeito senta-se diante de um quadro e o contempla, ou fecha os olhos e escuta uma música, ou lê um poema e, sem que se dê conta, a arte atua no indivíduo carente de significados, acalenta-o, o faz sentir-se humano, e o mundo, então, surpreendentemente, faz sentido.

Aquela mentira o salvou da pior das verdades, a grande alienação do homem em relação a si mesmo e, consequentemente, ao próximo e a tudo.

É isso o que me parece querer dizer o mestre Paul Klee.


Foto: Claudio Wakahara


DA - A Série Deuses é, sem dúvida alguma, um dos pontos marcantes de sua obra. Nela, é possível apreender um estreitar de laços entre o humano e o divino. Em que medida as inquietudes da alma ali aparecem diluídas?

SÉRGIO LUCENA - A série Deuses, que se divide em dois momentos, Deuses da Terra e Deuses do Céu, foi um divisor de águas. Em verdade, este foi o tempo apaziguador das inquietudes de minha alma.

Com os Deuses da Terra, pude me reconciliar com os meus medos, reconhecer neles meus mestres e aliados. O próprio título da série vem deste apaziguamento. Os animais remontam minha pintura anterior, ligada ao burlesco, ao anedótico, ao satírico, quando a pintura tinha forte caráter narrativo e era concebida como alegoria fantástica. Entretanto, agora, eles já não mais compunham o cenário como personagens coadjuvantes, eles foram alçados a protagonistas, únicos, dignos e solitários. Tratei de vesti-los com a mais fina joalheria, peles bordadas a ouro e platina, dei a cada um deles o seu lugar divino e merecido. Cada ser revelado em um Deus, um aspecto inconsciente de mim mesmo que, quando reconhecido na sua natureza e magnificência, abriu a porta de seu universo e permitiu que eu avançasse, integrando sua força ao propósito que nos une. Cada ser é um portal.

Esta experiência levou alguns anos, três, para ser mais exato, durante os quais tudo em mim e à minha volta se transformou. Veio assim à aceitação e o apaziguamento, situações que permitiram o novo momento da série: Deuses do Céu.

Enriquecido pelo mundo subterrâneo, alimentado de humos, tornei-me apto a, novamente e pela primeira vez, escalar a pedra da minha infância. Vi outra vez o que ainda não tinha visto: a vastidão, o horizonte indefinido. Minha pintura adentra um campo simultaneamente familiar e desconhecido... Deuses do Céu.

DA - Algumas de suas pinturas remontam ao realismo-fantástico e, nesse aspecto, poderíamos mencionar, por exemplo, os signos presentes em O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luís Borges. Nessa comunhão entre texto e imagem, o que mais lhe chama atenção?

SÉRGIO LUCENA - Todo pensamento tem sua imagem correspondente. A pintura abstrata, por exemplo, é a forma elaborada de um estado psíquico, emocional e de percepção da realidade. Lembro-me de Mark Rothko, grande pintor russo-americano, que não aceitava a alcunha de pintor abstrato, pois afirmava que sua pintura tratava do que havia de mais concreto: as emoções humanas básicas. Sobre a pintura que hoje faço, que não se presta a uma descrição narrativa, muito já se falou. Ou seja, o texto e a imagem são uma e mesma coisa. Um texto suscita uma imagem, uma imagem suscita um texto, são duas faces da mesma moeda. O que é preciso estar atento, e isto é muito importante, é que nem o texto existe para explicar a imagem nem a imagem existe para ilustrar o texto. Se tal situação ocorre, e sabemos que ocorre bastante, não estamos falando de arte.

DA - Você se utiliza do sagrado como uma forma de evocar um entendimento mais sublime sobre a condição humana?

SÉRGIO LUCENA - A condição humana é sublime, logo, toda miséria, todo o horror que assistimos diariamente não é outra coisa senão a ignorância deste fato: a condição humana é sublime.

O crítico de arte Jacob Klintowitz formulou o primeiro pensamento em nossa época, de que tenho conhecimento, relativo a esta questão. A este conceito chamou de “A Ressacralização da Arte”. O retorno em nossa época do princípio sacro da Arte que, assim como fora nos primórdios de nossa espécie, não se vincula a instituições religiosas, antes aponta para a comunicação direta do homem com o divino, o homem íntegro e integrado.

"Toda Arte que se pretende digna deste nome é religiosa", disse Matisse, um artista superior. Naturalmente, aqui ele não estava referindo-se às religiões ou dogmas, mas ao sentido etimológico da palavra religião: religare – ligar novamente, a grande arte religa o homem a sua natureza, sua sublime condição: O Deus Homem.

DA - O homem e a retomada de seu centro. Ainda estamos muito distantes desse propósito?

SÉRGIO LUCENA - De minha parte, considero que não se trata de uma questão coletiva, mas individual. Cada um deve buscar o seu próprio centro, o encontro é individual e único.





Foto: Alexandre Fonseca





JANELA POÉTICA (V)



Reminiscências


Leila Andrade



Reminiscências

são sombras que nos assaltam

de tempos recolhidos


de outrora


trazem reflexos dos nossos

acres desejos


as pedras caídas do muro


nada pode ser tão doce

quanto o sonho

finalmente ultrapassado








Foto: Alexandre Fonseca







ACIDENTE DE PERCURSO


Gerusa Leal



Já começou errada. Nos sonhos via-se outra. Lembrando de estudos e práticas antigas, herméticas, sonhava de olhos abertos, na intimidade aconchegante da poltrona velha de couro na biblioteca do avô.


Passou a vida tentando apagar as próprias pegadas. O colo materno não redimia; mesmo seguindo os passos do pai e da mãe (e talvez por isso mesmo), estava errada.


Culpada de não ter pintado, cantado, dançado, por habitar um mundo que não era o seu. Quantas guerras lutou que não lhe diziam respeito.


Porque não teve coragem de bradar o seu serei poeta ou nada. Nunca empreendeu sua viagem à Índia. Nem a crise nervosa a justificava. Pelo contrário: era delação. Culpada. Errada. Não era questão de velocidade nem direção, mas de sentido.


Como é que agora, o corpo preso entre as ferragens, vem com essas desculpas?




(Gerusa Leal é escritora entre o conto e o poema. Psicóloga de formação, vive, desde sempre, uma relação de puro fetiche com esse objeto lúdico/erótico/filosófico/estético chamado livro. Pernambucana, recifense, reside em Olinda. Tem escritos publicados em várias coletâneas e antologias. Alguns contos e poemas premiados isoladamente e seu primeiro livro-solo, “Versilêncios”, é Prêmio Edmir Domingues de Poesia 2007 da Academia Pernambucana de Letras. Colabora com a revista eletrônica Histórias Possíveis)









Foto: Alexandre Fonseca








JANELA POÉTICA (VI)



ESPACIO y LUZ


Miguel Ángel Muñoz



Me atrapa un misterio.

Voy por huecos inciertos,

reconozco cielos,

muros; el silencio

se hunde en el horizonte,

escucho una voz que juega

como la sombra a la sombra.

Duermo, sin saberlo.

Contra un signo otro signo,

paso a paso y

sin sentido.




(Miguel Ángel Muñoz é mexicano, poeta, historiador e crítico de arte. Além de diversos ensaios sobre arte, é autor dos livros de poesia Gravitaciones (1999), Ritual de signos (2000), Geometría de espacios (2003), Espacio y luz (2003), Convergencia (2003), Cinco espacios para Rafael Canogar, (Madrid, 2004). Participou de várias publicações no México, Espanha e América Latina. É diretor da revista literária Tinta Seca e colaborador das revistas Metérika (Costa Rica) e Agulha (Brasil))








OUVIDOS ABERTOS (II)


Por Fabrício Brandão



CÉU – VAGAROSA






Talvez seja natural gerar toda uma expectativa em cima do trabalho de gente que, num primeiro momento, foi capaz de arrebatar muitas atenções. Os efeitos da descoberta parecem pairar até que se chegue a um novo rebento. Junto com ele, está também o velho e incessante desejo pela novidade, algo que tome posse dos sentidos e soe com os devidos e agradáveis ecos de uma boa notícia. No caso de Céu, tal expectativa não se dá em vão e, como apregoa o título do próprio disco, a cadência das coisas de então vem tomada por uma força um tanto contemplativa, causando uma sensação de apreensão mais detalhada dos instantes todos. É como se o tempo e as suas múltiplas ações pudessem transcorrer sem pressa, relógios ou quaisquer limitações materiais. Vagarosa instaura, sim, um lugar diferenciado, coisa um tanto parecida com aquela noção do tempo cronológico tão presente na literatura.


Em seu segundo disco, Céu exala a sua busca pela maturidade musical, sentimento que aparece disperso pelas 13 canções. Por todos os cantos do álbum, o toque autoral da artista percorre os espaços, com exceção da belíssima Rosa Menina Rosa, composição de Jorge Ben Jor e que aqui recebe novos e valiosos ares. Com arranjos que agradam pela sua modernidade, regados a lampejos de samba, reggae, jazz e eletrônica, o cd atrai, sobretudo, pelas especiais vibrações impregnadas em faixas como Cangote, Comadi, Bubuia, Grains de Beauté, Ponteiro e Sonâmbulo. Vagarosa nos apresenta uma Céu bastante voltada para as densidades do texto, cujas letras exprimem tons existencialistas. Há um ritmo muito particular presente nesse trabalho, algo que cria uma atmosfera um tanto inusitada para as percepções mais imediatistas e vorazes. Só há um modo de não se perder nas primeiras escutas: abrigar os sons num canto embebido em serenidade.









Foto: Alexandre Fonseca








JANELA POÉTICA (VII)


L. Rafael Nolli



A um toque das mãos ter as pessoas,

poder ver na vida delas nossa vida continuada.

Pioneiras que antes de todos foram ao fundo

e dele regressaram com avisos, precauções.


A um toque das mãos ter as pessoas,

ser feliz com elas enquanto transitam –

estendendo a fronteira de nossa alegria

às ruas onde não eram aceitos os nossos passos.


A um toque, para o bem ou para o mal –

ter algo quebrado quando se embrutecem,

ser ferido quando se atracam,

quando se estilhaçam, ter algo partido.


A um toque das mãos ter as pessoas,

poder viver nelas o que não nos foi possível –

em seus pulmões o ar que nos foi recusado.

Seus sonhos e os nossos em uma mesma sala.


A um toque das mãos ter as pessoas,

ver nossa vida em suas vidas continuada.




(L. Rafael Nolli nasceu na cidade de Araxá, no ano de 1980. Publicou "Memórias à Beira de um Estopim". Pode ser lido no blog Stalingrado III)







Foto: Alexandre Fonseca






PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA


Por Tekka Whitman



Mnemósine, a deusa da Memória, era filha de Urano e de Gaia. Foi consorte de Júpiter, com quem teve nove filhas, as Musas da poesia, do canto, da dança, do teatro... O papel da memória é despertar lembranças pelas quais, segundo Platão, “a natureza mortal procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal”. O que o homem mais teme com a morte é ser esquecido, varrido da memória dos seus. Para garantir que sejam lembrados, os homens constituem família e procriam filhos que sejam portadores de sua memória genética. Ou produzem obras literárias, artísticas, artesanais, que o imortalizem. As artes e a ciência, por sua perenidade, são a resposta possível ao esquecimento, ao olvido – a dor que mais dói.


Das artes modernas, o cinema, com seu fluxo de lembranças, permite a qualquer pessoa o trânsito franco entre o passado histórico e seu passado humano. No Tríptico A Morte de Sergei Mikhailovitch Eisenstein, de Vinicius de Moraes, ele volta à sua paixão adolescente pelo cinema, homenageando o diretor russo de "O Encouraçado Potenkim", também o teórico da montagem, ao qual o poeta faz referência: "O cinema é infinito - não se mede./ Não tem passado nem futuro Cada/ Imagem só existe interligada/ À que a antecedeu e à que a sucede".


Cinema japonês é lento; imagine um filme japonês que trata da vida após a morte. Os mortos são recebidos por guias numa espécie de ‘estação’ ou pousada; seu papel é ajudá-los a vasculhar suas lembranças e fixar um único momento de suas vidas que elas carregarão por toda a eternidade. Os guias se valem de filmes e videotapes a relembrar o tal momento que eles imortalizarão. A ideia se baseia de novo em Platão, para quem a alma tem que passar por Lachesis (o passado), por Cloto (o presente) e por Átropos, o futuro. Em um ‘anime’ japonês, Kaze no Na wa Amunejia (O Vento Chamado Amnésia, 1990), direção de Kazuo Yamazaki, todos na Terra perdem a memória e voltam a um estado primitivo, exceto um jovem, que fazia pesquisas para aumento da capacidade do cérebro. Ele, então, parte em busca de pessoas que ainda tenham lembranças.


Para Pierre Louys, a memória não se vincula exclusivamente ao passado, mas a um devir, um processo dinâmico, pelo qual a memória humana é um processo cognitivo. O neurocientista argentino Ivan Izquierdo acha que a leitura é o meio primordial de se preservar a memória. “Não tem nada que chegue perto. Lendo, você exercita a memória visual, a memória verbal, a memória de outras línguas que você porventura conheça, a memória de sinônimos, a memória de imagens. Você lê a palavra árvore e passam infinitas imagens de árvores em sua cabeça. A leitura é a que evoca mais tipos de memória, mais formas de memória. Ler muito e ter bons níveis de escolaridade também ajudam a prevenir ou minorar os sintomas do mal de Alzheimer. Para aqueles que não têm vista para ler, ouvir alguém contar uma história é ótimo para a memória. Famosos escritores cegos fizeram isso e funcionou muito bem, como o argentino Jorge Luis Borges e o inglês John Milton”.


Cada indivíduo em particular acredita que sua vida deixará marcas indeléveis de sua personalidade. Mas para a Natureza deixaremos apenas átomos de nossa passagem, em grãos de areia, nas espumas das ondas, no pó do calcáreo. “Eu me planto de novo para crescer como a relva que eu amo. Se de novo me quiserdes encontrar, buscai-me debaixo das solas dos vossos sapatos. Deixando de encontrar-me ao primeiro momento, conservai a coragem: em algum ponto eu hei de estar a esperar por vós” / Walt Whitman.



(Tekka é escritora bissexta, de natureza bipolar, mas não morde. Mora em Brasília, à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais. Não quer ser imortal, posto que é chama. Mas quer viver, enquanto dure)








Foto: Alexandre Fonseca








JANELA POÉTICA (VIII)



Alexandre Bonafim*



Lembro-me de um tempo

anterior ao meu nome,

infância de um vento

sem pouso, sem morada,

corpo sem leste, sem norte.


Lembro-me de um ontem

anterior ao meu rosto,

ao meu silêncio.


E no fundo dessa memória

sem eco, sem fim,

vejo-me ilimitado

pelas constelações,

pelo fulgor das galáxias

e das marés em lua cheia.


Lembro-me de um momento

anterior ao meu ser...


E tudo é o silêncio intacto

das origens, verdejante alumbramento

a originar as palavras nunca ditas.



* Poema integrante do livro A margem do tempo.



(Alexandre Bonafim é poeta, contista e ensaísta. Nasceu em Belo Horizonte, mas passou a maior parte da vida pelas terras do estado de São Paulo. É eternamente mineiro em exílio, mineiro nas raízes da vida. É mestre em literatura brasileira. Defendeu a seguinte dissertação: "A graça poética do instante: poesia e memória nas crônicas de Rubem Braga". Atualmente é doutorando pela USP, em literatura portuguesa)









Foto: Alexandre Fonseca




O paraense Alexandre Fonseca é fotojornalista em Manaus. O sentido captado por sua lente perspicaz ultrapassa o simples registro do cotidiano, a alma do tempo ganha uma proporção única e a originalidade é indiscutível em suas imagens. Por sua própria definição: “o fotojornalismo não é somente registrar os fatos ocorridos na corrida que é ser fotojornalista. Ser repórter fotográfico é ter repertórios que o levem a pensar além de tais fatos. É produzir algo sem modificar o real e fazer desta realidade algo que possa levar a cena a um patamar poético, mesmo sendo dolorido”.

Alexandre é responsável pelo impulso que a fotografia local ganhou, nos últimos quatro anos, com a idealização do projeto A escrita da luz em Manaus. Um trabalho contínuo e atuante desenvolvido em benefício do aprendizado, da criatividade e da vivência fotográfica.


 
publicado por Fabrício Brandão
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