28 de fev. de 2011,22:36
QUINQUAGÉSIMA QUARTA LEVA




Eros y Tango
Pintura: Ida O.





CICERONEANDO


54 Levas e tantos caminhos já descortinados. Tudo é pouco, ainda, para uma existência cheia de possibilidades e aprendizados. Aliás, a cronologia dos dias anuncia bem mais do que uma mera passagem temporal. Uma ideia, por vezes, nasce imatura, incerta, quiçá tímida e sem ao menos imaginar tudo o que pode atingir. Nesse ínterim, o tempo é sempre o conciliador das esperas, intervalos que remontam a desejos de saber e sabor. O mais importante é aprender com as pessoas, suas experiências, seus olhares, as lições trazidas por seus equívocos. Até aqui esse tem sido o principal exercício dos leveiros da Diversos Afins. Uma série de desafios bate insistentemente à porta dos nossos dias e continuar, tendo as escutas humanas como norte, importa mais do que qualquer coisa. Cada edição finalizada presta-se a uma espécie de devoção não somente àqueles que fazem o hoje, mas também aos que pavimentaram o caminho desde a nossa primeira infância. O resultado é um mosaico que se desloca no tempo com suas feições múltiplas a apontar para a necessidade de seguir em frente. E como é fantástica a tão intensa arte do encontro. Sem arriscar e caminhar adiante não seria possível agregar mais e mais artistas e autores, todos prontos a nos ofertar seus mais variados signos de mundo. Que venham, então, agora os densos contornos presentes nas telas da artista plástica argentina Ida O. . Sejam desfilados os versos intimistas de Mariana Botelho, Denise Freitas, Floriano Martins, Barbara Leite, Nydia Bonetti, Gustavo Felicíssimo e Juliana Bernardo. Captem-se algumas impressões de uma vida dedicada à literatura na entrevista concedida pela escritora e mestra Maria da Conceição Paranhos. Que saibamos mais dos entreatos do cotidiano pelos contos de Jorge Mendes, Rodrigo Melo e Abilio Pacheco. Que a vida se perpetue pelo novo sopro presente no talento musical de Flora Matos. Aos leitores e colaboradores, nossa incessante gratidão.



*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.





JANELA POÉTICA (I)


CORTE

Denise Freitas



bem ensaiava-se
a cena
encartes entrecortados acentos
animavam-se

igual a outros
destroços
no fundo filme mudo
que só ao dono dos olhos é sentido às coisas

bastou-me teu cinema
e nada mais domingo


(Denise Freitas nasceu em Rio Grande (RS). Escritora e professora de história. É autora de Misturando Memórias (2007), Mares inversos (2010))






Tango y Luna
Pintura: Ida O.






a garota dos sonhos na casa de cactus

Jorge Mendes


“ela é só um sonho entre tantos espinhos, deixe-me sangrar um pouco.”
John Fante

ela chega depois da chuva, com o vinho da juventude e 20 anos de atraso. ela tem esse nome lindo com consoantes e vogais dobradas e abre o livro e o torquato nos diz para ir buscar o verbo encantado. ela é uma espécie de mágica perversa: é a garota dos sonhos, um doce pesadelo dentro do aquário da minha cabeça.

então, ela inventa testes. edita imagens, tem uma palavra grega tatuada na carne do braço e gargalha e abre o céu e esquece.

ela ama japoneses, gays, holandeses, negros, meninas, gatos e enjoa, sente nojo, se masturba. goza, vira pru lado e dorme.

ela usa uma armadura de gelo, tem uma estrutura óssea aristocrática e os olhos são de fogo, chocolate e pimenta. ela sente medo, culpa, insegurança e é perversa e má porque é bela, belíssima, e sabe usar a lógica do desprezo.

ela tem esse corpo branco de leite e veneno e suas mãos são grandes com dedos em curva. seus seios são como dois frutos do paraiso, isto é, pequenos e concentrados, você os morde e vai direto pru inferno.

e ela geme emitindo relâmpagos e beija de olhos abertos e foge.

ela quer ir pru nordeste, transar com o tremendão, quer roterizar o avó, devorar o pai, ser uma outra mãe. ela quer viver de arte, criar uma linguagem, ser imagem, musa de copacabana, cheirar o cu da trupe, maldita vadia.

ela mora na casa de cactus e não sabe que o dentro do mundo não tem fundo e nem reconhece a palavra abismo. ela fez do espelho o seu jardim.

encantada.

ela tem livros, discos, facebook, panelas de inox e o passado digitalizado em pastas que ela guarda na memória do computador. ela não sente dor, gosta de coentro, depila as axilas e o buço com cera quente. ela não corta os cabelos, apenas apara as pontas. suas unhas são pintadas de verde forte ou vermelho clarinho. ela é quase vamp, quase fada, uma imagem congelada de botticelli.

ela alça vôos panorâmicos. vive dentro de um plano seqüência. ela não tem sombra.

ela sabe tudo. ela não sabe nada. ela me deixa tonto. ela me deixa lúcido. ela me morde o ombro. ela me encara de longe.

ela simplesmente não me ama.


(Jorge Mendes é formado em história, "quase" pós-graduado em teoria da comunicação pela eca-usp (abandonou o mestrado pra viajar por aí), avesso a qualquer tipo de glamour, leitor voraz de brautigan, amante do vinho e da cachaça, pede pouco e recebe na cara e nunca tem ninguém por perto quando bate a vontade de cortar os pulsos)







Fumando Espero
Pintura: Ida O.




JANELA POÉTICA (II)

Mariana Botelho


não sei verbalizar
o abismo

sei cair
dentro dele
como dois olhos que eu avisto e temo

e o chão se demora -
amor -
a tocar meus pés



(Mariana Botelho é de Padre Paraíso, no Vale do Jequitinhonha /MG. Moça da roça, lançou seu primeiro livro “o silêncio tange o sino”, pela Ateliê Editorial. Escreve às quintas-feiras no Tertúlia Pão de Queijo, junto com outros mineiros)










DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Fabrício Brandão


O Visitante (The Visitor). EUA. 2007.



Muita gente talvez passe toda uma existência buscando um sentido para a vida. Seja semeando utopias, seja tentando vencer qualquer tipo de descrença mais imediata, todos parecemos querer emprestar razões plausíveis ao conjunto de coisas que desaba sobre nosso ato contínuo de respirar. E viver, então, entre um sopro e outro, pode significar algo revestido da mais significativa simplicidade. Mais do que isso: redescobrir a vida seria, por exemplo, ser tomado de assalto por uma surpresa bem típica dos mistérios do destino. Tal condição parece desaguar bem na condução narrativa de O Visitante. Vejamos, pois, um protagonista que tem sua vida profundamente marcada por uma viagem de trabalho. Some-se a isso um árduo, porém singelo, desejo do personagem: a obstinação em aprender a tocar piano.

Antes que as ideias pareçam desconexas por aqui, é preciso dizer que o professor de economia Walter Wale, brilhantemente interpretado por Richard Jenkins, aparenta não intentar muito da vida, além de querer dominar as notas de um piano. No entanto, a reviravolta a qual sua rotina é lançada é capaz de revelar traços que superam uma personalidade predominantemente sóbria e tímida. Ao viajar a Nova York para uma conferência acadêmica, Walter depara-se com um casal que até então estava morando em seu apartamento sem que ele sequer desconfiasse. E é justamente essa dupla de imigrantes, o sírio Tarek (Haaz Sleiman) e sua namorada senegalesa Zainab (Danai Gurira) que mexem com algumas convicções cristalizadas do protagonista.

Em meio à enfadonha tarefa de apresentar um artigo no evento para o qual foi convocado, Walter encontra no jovem Tarek a perspectiva de que seus rumos podem eleger outros ares. Há aqui algo de mais profundo no fato de o professor deixar de lado a obsessão pelo piano e enveredar pela seara da percussão, ofício de Tarek. Se por um lado temos a questão da condição delicada dos imigrantes num país como os EUA, por outro vemos no filme um americano estrangeiro de si mesmo, buscando nos entreatos sutis da vida uma espécie de redenção, algo como escrever no livro de sua existência páginas que recompensem o caminho, sem olhar para trás e sequer temer o julgamento alheio. Vale ressaltar que toda essa profundidade presente no personagem rendeu a Richard Jenkins a indicação ao Oscar 2009.

A amizade construída entre Walter e Tarek é um marco especial da obra, pois muda radicalmente o destino do professor. Com a prisão do sírio num complexo de imigração, Walter se vê embutido da missão de libertá-lo a qualquer custo. A partir daí, o filme ganha contornos especiais, principalmente com a entrada em cena da mãe de Tarek, muito bem interpretada pela israelense Hiam Abbas, pessoa que estabelece uma relação bela e delicada com Walter. Nesse ínterim, algumas questões são levantadas, mas a maior delas é, sem dúvida, o entendimento de que existir é, sobretudo, agarrar-se ao dinamismo do inesperado. Mesmo que tenhamos medo de arriscarmo-nos à ponta de um abismo, o imprevisível resta pronto a nos seduzir e mudar muito do que dizemos a nós mesmos como verdades firmadas.








El Desfile
Pintura: Ida O.






JANELA POÉTICA (III)



REFERÊNCIAS

Juliana Bernardo


uma árvore fina se balança
aos pés dos edifícios

não suponham reverências
na sua grande ironia:
ter os pés no chão não a impede
de se sacudir na ventania.


(Juliana Bernardo é autora do livro “Carta Branca”, lançado em fevereiro de 2011 pela Editora Patuá. Nasceu no dia dos namorados em 1989. Graduanda em Filosofia pela Universidade de São Paulo, foi publicada no site Mix Brasil, nas revistas Ventos do Sul, Cabeça Ativa e Originais Reprovados. Entre seus prêmios estão: 1º lugar no 24º Concurso Yoshio Takemoto (2006), 2º lugar no 7º Concurso de poesias CNEC/FACECAP (2007)




Tango Abrazo
Pintura: Ida O.








UMAS LUZES, LÁ LONGE, PISCANDO

Rodrigo Melo


Conheci Ilma numa sala de bate-papo da internet. Dias depois, peguei emprestado o carro de um primo e segui rumo à Cidade Baixa, mais precisamente para a Rua São José, casa 263, perto da Igreja do Bonfim. Toquei a campainha e, enquanto esperava, pensei: aí vem a morena sensacional que vi nas fotos, a recompensa pelas madrugadas iluminado apenas pela tela do computador, morrendo de sono mas com uma vontade imensa, morrendo de sono mas aceso por dentro, sonhando acordado, com ela, com nós, com o futuro, com uma cama redonda e macia em algum lugar. Ilma tinha seios fartos. Viver é fácil demais, eu imaginava. Aí vem ela.

A porta foi aberta, um velho apareceu.

- Boa noite, Ilma está?

- Você que é o Rodriguez?

- Sou.

- Eu sou o pai da Ilma. Pode entrar.

Ele virou-se e eu fui atrás. Passamos por um corredor, depois guinamos para a esquerda, entramos por outro corredor e, por fim, chegamos a uma sala. Havia uma senhora sentada no sofá, assistindo TV. Era a mãe. Ilma desceria logo, acabava de se arrumar. Sentei-me numa das poltronas e acompanhamos o Jornal Nacional. Houvera um derramamento de óleo em algum lugar – peixes e gaivotas metidos num mar negro demais. Às vezes comentávamos as reportagens. Tudo muito medido, formal. Não me sentia incomodado, de qualquer maneira. Eu me sentia, claro, como um homem escrevendo o seu próprio destino. O vento entrava pela janela e era bom estar ali.

Então a mãe falou:

- Quer dizer que o senhor é dramaturgo.

- Tento ser – respondi, sorrindo meio sem graça.

- Pelo que soube, é talentosíssimo.

Mandara alguns esboços para Ilma, tudo cópia de um pessoal que, imaginei, ela nunca viria a conhecer.

- Creio que a Ilma foi generosa.

- Será? Eu adoro teatro. Quando fará uma montagem por aqui? Quais são suas influências?

Será que a velha entendia mesmo do negócio ou estava apenas me testando? Cara de boba ela não tinha. Já me preparava para perguntar onde o sanitário, quando escutei os saltos na escada. Virei-me e lá estava Ilma metida num vestido branco com bolinhas azuis. Analisando-a dali, de fato lembrava a mulher que eu vira nas fotos, mas se cruzasse comigo num elevador, eu provavelmente não a cumprimentaria. O tempo passara e o que deixava pra mim naquele instante era apenas uma mulher encorpada demais, com uns cabelos armados para cima, num estilo antigo, e um rosto desgastado e sofrido demais.

- Amor... – ela disse.

Caminhou na minha direção e me abraçou, o perfume rescendendo a elevador de serviço, em seguida me beijou.

- Vamos? – perguntei, quando nos separamos.

A verdade era que eu havia caído numa armadilha. Não deixava de ser frustrante e desanimador. Já disseram, no entanto, que todo homem deve tirar uma lição de tudo o que não lhe traz a completa felicidade. E era o que eu fazia, ou tentava fazer, alguns minutos depois, sentado numa mesa do barzinho que ela indicou: vista bonita, o mar, a Ilha de Itaparica e umas luzes lá longe, piscando. Pedi vinho. Disse pro garçom, no balcão, que um nacional mesmo servia. Enchi a taça dela, enchi a minha, brindamos e eu comecei a dar grandes goles olhando ao redor. O vinho não era fraco. A cada gole, eu me sentia melhor, o barzinho ficava melhor e Ilma também melhorava. Curioso e interessante aquilo. Ela estava realmente bem fofinha, mais madura, só que, eu notava, ainda possuía atrativos: os seios estavam mais fartos que antes, a boca carnuda e a bunda, maior. Por debaixo da mesa, ela ia me acariciando, enquanto pedia uma calabresa com farofa pro garçom.

Então, uma hora depois e o motel.

Joguei-me por sobre o colchão e fiquei a observá-la na frente da cama, de pé, tirando o vestido e mostrando-me uma cinta-liga vermelha cheia de penduricalhos – as carnes apertadas contra a lycra, mas sob a fraca luz do quarto eram carnes sensuais. A vida parecia fácil outra vez. Tínhamos o nosso combustível, vinho nacional e as promessas na frente do computador. Lembro dela fazendo biquinho, alisando o pescoço e olhando pra mim.

E, inevitavelmente, nos amamos por horas e horas e horas, até que não agüentei mais e dormi.

Quando acordei, muito tempo depois, Ilma estava debruçada sobre a geladeira, em busca, provavelmente, do Chokito que eu havia comido. Uma luz mais forte substituíra a anterior e eu pude notar então as suas estrias e celulites apertadas contra a cinta-liga pequena demais. Uma cena feia e de mal gosto. Foi nesse momento que voltei a enxergar algo de errado em toda aquela estória. Tive a consciência, na verdade, de que eu não deveria estar ali. Sim, era isso. O encanto acabara e eu descobria que Ilma era má e me enganara de propósito quando enviou fotos de anos atrás. Ela brincara comigo e com meus sentimentos, enquanto eu precisava apenas de uma mulher sincera, uma mulher que não abusasse de subterfúgios maldosos, que não me considerasse um homem bobo que caía em todas as armações.

Por um segundo, lembrei da velha, sentada no sofá, e das gaivotas metidas num lamaçal sem fim.

Levantei-me e falei para irmos embora, dizendo que teria que devolver o carro.

- Você ficou tão calado de uma hora pra outra... – ela disse, quando desceu do carro, na frente da sua casa.

- Impressão sua.

- Será?

- Com certeza.

- Quer entrar um pouquinho, então?

- Não posso, meu primo tá esperando.

- Ai, amor, liga pra ele lá do meu quarto. Aposto que vai entender.

- Ilma, minha querida, você não me conhece direito, mas eu sou um homem que honra os compromissos. Faço questão de honrar. Nunca o enganaria.

- Olha, então deixa eu dizer...

Pode ter parecido loucura, mas a verdade é que eu não escutei o que Ilma disse. Não queria. O que fiz quando ela começou a falar foi pisar fundo no acelerador e o carro saiu cantando os pneus nos paralelepípedos da Rua São José, lá perto da Igreja do Bomfim. Tudo estará bem se eu conseguir escapar a tempo, pensava comigo. Tudo voltará ao normal se eu chegar até a outra esquina e alcançar a avenida principal. A existência voltará a ser simples e pura se eu não parar mais. E eu não parei. Continuei seguindo em frente, veloz, vencendo o asfalto negro da madrugada e indo para o outro lado da cidade, em busca, quem sabe, da trilha certa para achar o meu verdadeiro amor.

Ilma, por sua vez, permaneceu no mesmo lugar em que a deixei: as mãos apoiadas na cintura, os cabelos amassados e o vestido de bolinhas azuis ficando a cada instante menores pelo meu espelho retrovisor.


(Rodrigo Melo é contista, mora em Ilhéus, no sul da Bahia, e já foi editado por inúmeras revistas. Seu livro, "gambiarra", deverá ser lançado em 2011)







Los Adláteres
Pintura: Ida O.







JANELA POÉTICA (IV)


2 HAIKAIS E UM TANKA DE GUSTAVO FELICÍSSIMO



os pássaros presos
cantam de melancolia –
os homens se alegram

...

vivo a ordenhar
as pedras do meu jardim –
minerais poemas

...

a noite em silêncios
cada vez maiores traz
seus homens vazios
-------falsos aromas despertam
-------a vida que vive no cio


(Gustavo Felicíssimo é poeta e ensaísta. Atua como preparador de textos para editoras e poetas, tendo colaborado para a publicação de diversas obras. Seus livros publicados são: “Diálogos: Panorama da Nova Poesia Grapiúna”, Editus/Via Litterarum, em 2ª Edição; Silêncios (haikai), Via Litterarum, em 2ª Edição. Venceu o prêmio Bahia de Todas as Letras, edição 2009, em duas categorias: Poesia e Literatura de Cordel. Venceu o Prêmio Nacional Patativa do Assaré de Literatura de Cordel (Minc). Teve o projeto “Dendê no Haikai” premiado pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia)





Club de Tango II
Pintura: Ida O.









PEQUENA SABATINA AO ARTISTA

Por Fabrício Brandão


Não basta termos em conta essencialmente a qualidade textual de um poeta, seja ele um maestro da técnica e dos instrumentos formais na concatenação de versos. É preciso transcender a condição do zelo que constrói o texto sob o ponto de vista dos arranjos, digamos assim, físicos. Isso implica numa exposição íntima e pessoal das visões sobre um mundo de coisas. Daí, o incremento da porção humana, do modo singular e denso com que o escritor traz a substância da vida à tona. Até mesmo para os criadores mais céticos o próprio ato de expelir imagens em versos redunda numa crença inalienável na existência, provando que o caos interior ordena-se em favor de uma nova dimensão de vida. A longa e complexa estrada da literatura promove encontros e incita-nos à autocrítica de nossos tempos. Talvez aí esteja uma de suas maiores virtudes.

Tais reflexões assumem um importante significado quando miramos a obra de um alguém como a escritora baiana Maria da Conceição Paranhos. Acostumada desde uma tenra idade ao convívio com as letras, ela sedimentou uma trajetória cujas atribuições atravessam as feições de poetisa, professora acadêmica, ensaísta, dramaturga e tradutora, dentre outras. Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal da Bahia e Ph.D. em Literatura Comparada pela Universidade da Califórnia, Berkeley, são de sua autoria, dentre outros: Chão Circular (poesia). Salvador, Imprensa Oficial da Bahia, 1969; Os eternos tormentos (poesia). Salvador, Edições Macunaíma, 1986; Adonias Filho: representação épica da forma dramática. Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado, 1990; As vãs procelas. Salvador, Edições Palmares, fevereiro de 2000 (Poemas Soltos 24) e Delírio do Ver (poesia). Rio; Salvador: Imago / Secretaria de Cultura do Estado da Bahia), 2002. (Coleção Bahia: Prosa e Poesia). Participou de diversas antologias e a maioria de sua obra, poética e em outros gêneros, é inédita (nove livros prontos). Compartilhando um pouco de suas experiências e visões em torno do fazer literário, Maria da Conceição Paranhos recebeu a Diversos Afins para essa pequena sabatina que agora se materializa aos olhares dos leitores.


Maria da Conceição Paranhos
Foto: arquivo pessoal


DA - Com toda a sua vivência pessoal pelo vasto universo literário, acredita numa definição precisa sobre a importância de se fazer poesia?

MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS - Definição é complicado. Creio que as ciências exatas poderão fazê-lo com mais propriedade. Poesia, como já pude expressar antes, é viver o mundo como se o inaugurasse, poema é lua-de-mel com a linguagem e a língua nativa. A importância da poesia de hoje e de sempre é a possibilidade de expressar a experiência particular do poeta com dimensão universal, que diga respeito ao ser humano. Ao falar de sua experiência, o poeta toca no coração da vida. No corpo do poema se situam as indagações fundamentais do ser humano e uma, digamos assim, probabilidade de mobilizá-las em favor do leitor, dos leitores de poesia – que são raros.

Numa sociedade como a nossa, sem ideologia, ferozmente capitalista, a poesia é um objeto tão supérfluo, decididamente inútil para tal sistema. Exatamente neste ponto incide a importância da poesia. Não é prevista como bem de consumo. É território livre onde todos podem ingressar.

A atividade poética é, em sua própria natureza, revolucionária. Também é exercício espiritual e um método de libertação interior. A poesia revela este mundo e cria outro, que por sua vez, devolve-se ao mundo originário.


DA - Há, de fato, um distanciamento muito grande entre aquilo que é ensinado nas escolas de Letras e o que realmente importa em termos de criação literária?

MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS - Pessoalmente, tive professores que puderam me revelar muitos dos mistérios da poesia, inclusive com oficinas de criação. Tasso da Silveira, Alceu Amoroso Lima, Lygia Castro, Cleonice Berardinelli, Domício Proença Filho, Antônio Barros, Judith Grossmann – aqui no Brasil. Claro que tive muita sorte, mesmo depois, na pós-graduação fora do Brasil.

De modo geral, por ter sido durante muitos anos consultora da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), posso testemunhar mais amplamente o que se faz nas universidades federais. Há muitos professores aptos para descerrar as portas da criação literária, e igual contingente exatamente contrário, ou seja, não sabem como lidar com o evento literário. Houve uma leva, nos anos 90, de docentes fascinados com os Estudos Culturais e com as teorias do Pós-Modernismo, o que realmente ficava na periferia da literatura. Entretanto, tinham consciência de que não queriam adentrar a criação literária.

Pude observar que o que se faz nas escolas de Letras, como diz você -de modo geral e ressalvadas as exceções - é primariamente ensino de história e historiografia crítica da literatura, um pouco de teoria da Literatura - que se diferencia de professor para professor, a depender de sua preferência e “escolas” pessoais: Filosofia, Sociologia, Psicologia e Psicanálise, História, Semiótica e assim por diante. Mas, claro está, que a intenção das escolas de Letras não é formar poetas, mas professores. E há os poetas que são professores. Aí é outra, a história – para o melhor e para o pior, pois há poetas que não conseguem ser professores. Tem de haver uma harmonização, ou vira bagunça. Conhecimento sistemático é uma das metas das universidades.


DA - Parece haver um ponto em que o poeta se depara com as agruras de um pathos, espécie de conflito a refletir incômodos internos. No seu caso, a produção poética cruza, em maior escala, desertos da alma ou epifanias da leveza? Equacionar tais antagonismos é uma válida saída criativa?

MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS - Creio que ambas as tendências têm sua própria saída. Isolada ou conjuntamente. A “família” poética a que se pertence tem suas características sem dúvida. Creio que é porque o ser humano é assim mesmo. Por que o poeta seria diferente?

O que minha poesia tem despertado com mais frequência, não sei bem. A crítica tem apontado influências tais como a da lírica camoniana e shakespeariana; Augusto dos Anjos; Cruz e Souza, os simbolistas franceses (particularmente, no pré-simbolismo, Lecomte de Lisle e Charles Baudelaire); Fernando Pessoa; os poetas metafísicos ingleses, mas também de poetas “solares” como Castro Alves e Walt Whitman; Gonçalves Dias e Jorge de Lima. Sem dúvida, minha poesia sofre a influência desses e de outros poetas. Fala-se de um neobarroquismo, como uma de minhas características, o que me faz credora tanto do corpo quanto do espírito – e seus embates. Já se falou da influência das Ciências Físicas e Biológicas, das ciências práticas como a Medicina, da fala do punk urbano, até...


DA - Quais aspectos você considera fundamentais na sua relação com os novos autores?

MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS - Tenho muita aproximação com alguns dos poetas jovens. O que acho fundamental? A confiança que têm em mim. Daí minha grande responsabilidade. Não me nego a ler os poetas que surgem. Se percebo que são poetas, claro, porque texto por texto, prefiro o silêncio.


VISITA

Apenas isto: andar, buscando a vida,
sem carregar consigo nenhum tempo.
No céu, é tarde. A voz não pressentida
emite um grito vão, irmão do vento.

Andar assim, o corpo numa lágrima,
indagando um destino de demência,
A contemplar estrelas – só, em pânico,
e este silêncio frio, e esse silêncio...

Viste a louca mudez da estátua fria?
Já o dia se cumpria, e o abismo abria-se
nos meus olhos vendados e vazios.

Talvez a ida seja breve e pura
ao suspiro letal em hora túrbida,
mas visito a paisagem cada dia




DA - Numa entrevista concedida à nossa revista algum tempo antes de sua passagem, o saudoso poeta Ildásio Tavares dizia que era mais fácil e melhor fazer poesia nos anos 60. O que dizer, então, de hoje?

MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS - Não sei se concordo com meu querido e admirável amigo. Acho que ele se referia ao fato de os poetas estarem mais próximos, unidos em torno de um ideal comum. Nunca foi fácil ser poeta, jamais será fácil fazer poesia: é uma arte esquiva, com forte tradição. Quem não se conscientizar disso não chegará a escrever poesia propriamente dita.


DA - Em sua opinião, o que é necessário para se formar bons leitores?

MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS - Um bom marketing cultural é uma necessidade básica, mas o acesso ao livro enquanto bem de consumo é um problema que se esbate com as limitações financeiras da maioria da população.


DA - De que modo a sua experiência como professora acadêmica impulsionou marcantemente seus rumos de poetisa? É muito tênue a linha que divisa tais feições?

MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS - Escrevo desde a infância. Minha experiência como professora deve ter, claro, influenciado meu fazer poético, tanto quanto outras influências. Tudo é experiência vivida, e esta é a matéria da poesia.


DA - Você tem trabalhado em cima de uma série de poemas inéditos. Já tem alguma ideia de como tudo será organizado?

MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS - Não faço a mínima ideia. Não tenho tido tempo para tal. Com tantos inéditos, como teria tempo para viver? A vida é o mais importante.




Tango Al Reves
Pintura: Ida O.




JANELA POÉTICA (V)*

Nydia Bonetti


fosse flor, o verso
arrancava-lhe as pétalas
pássaro fosse
— as penas
é verso só:-
arranco-lhe a pele a penas
e deixo sangrar


* Poema integrante do, ainda inédito, Sumi-ê.


(Nydia Bonetti nasceu em Piracaia, interior de São Paulo, em 1958, onde reside atualmente. Engenheira civil e poeta, publica seus trabalhos no Longitudes: tem poemas publicados na Revista Zunái, Germina Literatura, Portal Cronópios e outros sites literários e culturais. Acredita na poesia como tradução da “devoção interna”, muito além de qualquer manifestação intelectual. Cultiva a vida simples e segue, ao pé da montanha, à margem do rio, em busca da flor. Assim)







Bailarines
Pintura: Ida O.






RITORNELO

Abilio Pacheco


Todos os dias ordenava que se lhe contassem aquela história da reconquista. Sempre dormia e esquecia o enredo no dia seguinte. Mesmo que lhe dissessem tê-la ouvido ontem, não lembrava sequer de ter pedido que contassem.

Décadas atrás, por retaliação, a propriedade fora invadida, o dono assassinado a facadas durante o sono e a mulher violentada e deixada inconsciente num ermo qualquer. Uma vintena de anos mais tarde, o filho daquele mal-feito, alimentado a leite e ódio, voltaria para vingar-se.

Nunca alteravam o grosso da história; mas mudavam um ou outro detalhe: o herdeiro, dia entrava pela janela, dia arrombando a porta, dia escondido num barril, dia se passando por mascate para depois lhe desfechar uma punhalada na cabeça.


(O baiano Abilio Pacheco reside em Belém. É Mestre em Letras pela UFPA- Belém. Publicou Poemia (poesia) em formato semiartesanal em 1998, Mosaico Primevo (poesia) em 2008, e Riscos no Barro: ensaios literários (2009). É um dos organizadores da Antologia Literária Cidade. É membro correspondente da Academia de Letras do Sul e Sudeste Paraense com sede em Marabá)







Tango Pasado y Presente
Pintura: Ida O.








JANELA POÉTICA (VI)


LUZES SUSPEITAS

Floriano Martins


E hoje, de que queres morrer?

Marcas de pequenos crimes e amuletos como pistas plantadas.
Parábola do filho errante mendigando por entre imagens sangrentas, memória fanática por suplícios, luz refletida sobre uma pequena mesa ao canto, caixa de madeira em formato de livro, o olhar percorria os corpos recortados, fotografias saídas da angústia de um pesadelo, o filho, o filho, insinuando-se vítima, com a minúscula tesoura detalhava cenários, aclimatava futuros sacrifícios

Já não sinto mais dor alguma.
Colagem de vozes gravadas, outro requinte de falsas provas.
O filho remontando acidentes como peças de um teatro miserável, agonia povoada de máscaras, curva figura a tocar um bombardino, uma velha na cadeira de balanço, talvez cega, sorrindo com membros decepados de outros corpos em suas pernas, o que há de mais inútil é o que sobrevive em tudo, o filho regendo o balcão de estranhezas, sórdidas fatias de um drama improvisado.

Mata-me de uma vez, desgraçado.
Por último chegaram as cartas, evasivos manuscritos.
Onde vamos entrar agora todos vão se passar por loucos, como se abríssemos uma chaga no dorso do crucifixo, imagem e semelhança da dissolução, errante o filho, peregrino e hospedeiro, emanações que foram volúpias teologais adentradas nos sonhos do paciente, sempre o filho repetindo a severa melancolia de dentes trincados, a profundeza de labirintos com tinta fresca.

Apócrifos eram todos os caminhos que conduziram a Helena.
Quando encontrada, não havia uma marca visível de violência física.
Eu lhe disse que era cega, não me queria para nada exceto para o impossível, eu não poderia vê-lo jamais, estava ali comigo todo dia a sugerir coisas, falando em peças de teatro que havia escrito, recortes que preparava para uma exposição, ria da polícia a cada vez que preparava uma pista, não sei se era exatamente louco.

“Já não sinto mais dor alguma.”
O relato de Helena acendia outros matizes.
Talvez tenha me visto urinar, mas não creio que estivesse ali para isso. Me alimentou e por vezes me disse que pouco lhe importava meu sexo. Cantarolava em lânguidas notas, falava de música e religião, os olhos de deus são uma cicatriz, vivia a repetir, ao falar de minha dormência queria fazê-lo entender que nada se modificaria, eu simplesmente não poderia atendê-lo.

“Mata-me de uma vez, desgraçado.”
Cansada de tudo aquilo, Helena sabia-se tragada por uma ficção.
Ele me descreveu em detalhes o lugar onde estávamos, gostava disso, me pedia para repetir frases, comentava sobre personagens de um teatro imaginário, não poucas vezes o ouvi chorando, podia jurar que sim, minha aflição não era a dele, e o detestei por isso, assim vamos todos ficar loucos.

“E hoje, de que queres morrer?”
Também o policial encarregado do caso tinha algo a dizer:
Que maldito emprego temos, o de seguir padrões de irregularidade, a qualquer momento um louco atravessa nosso caminho e atesta um colapso da sanidade, fitas gravadas, cartas, amuletos esquecidos (cabelos de supostas vítimas, colados em conchas marinhas), um idiota queria despertar a atenção da mãe e não ganho (francamente) o suficiente para tais riscos.

“Talvez tenha me visto.”
O homem se expõe ao mistério de si mesmo, fervor reanimado.
O assunto se tornava insuportável, mães violentas, filhos loucos, vítimas confusas, como é silencioso o equívoco ante a surdez de espelhos, e consideramos a imprecisão algo apenas formal, desprezando o salto entre agonia e expressão, o louco que vira em uma mulher cega qualquer (pouco importava que fosse Helena) a mãe que nunca lhe percebera, uma luz suspeita, um deslize de linguagem?


(Floriano Martins é cearense e já publicou alguns livros, entre poemas, ensaios, traduções e preparação de antologias alheias. Coordena o Projeto Editorial Banda Hispânica. Tem uma incorrigível inclinação para envolver outras pessoas em tudo que faz, em decorrência do que certamente estejam em curso projetos dentro e fora do país, envolvendo a publicação de livros e a organização de eventos)




OUVIDOS ABERTOS

Por Fabrício Brandão


FLORA MATOS – FLORA MATOS VS STEREODUBS



Perceba uma canção como Esperar o Sol. Agora, prossiga as escutas e enverede por Interlúdio (Paixão). Não satisfeito, pode ainda capturar os signos de Meu Caminho e, depois, finalizar com a suavidade cativante de Minha Voz. Está pronta uma sequência possível para a apreciação sonora da brasiliense Flora Matos. Estamos diante de uma jovem e talentosa MC a descortinar com verdade e vigor o universo do rap. O disco em questão faz com que Flora debute, nos caminhos, cheia de personalidade e apontando decididamente os rumos que pretende seguir vida musical afora.

Com apenas 23 anos, a moça juntou-se à dupla Stereodubs e o resultado foi um mix de expressões dignas de elevar o rap a uma condição toda especial. Há uma qualidade inquestionável nas melodias e, sobretudo, nas letras aqui presentes. Cada canção mescla elementos bem típicos do gênero em voga, apresentando letras que transportam o ambiente crítico do rap a um olhar sensível e diferenciado sobre a vida. Uma viva e terna poesia do cotidano ousa tomar nossas atenções de assalto. Basta perceber a conjugação dos arranjos e letras para chegarmos à conclusão de que o discurso presente no disco nada tem a ver com qualquer coisa que pareça panfletária. O misto de poesia urbana com temas ligados ao amor, à sensualidade e ao sutil ambiente de crítica social salta aos olhos, ou melhor, ouvidos. Tudo na dose certa.

Ouvir os novos impulsos trazidos por gente como Flora Matos é, acima de tudo, rechaçar o discurso pedante e cético que insiste em rondar nossa “moderna idade”, o qual ignora veementemente a qualidade de valiosos artistas recém chegados à cena musical. De resto, gosto é gosto, mas deixemos o leite mau para os caretas.


* Para abrir ouvidos, clique aqui





Sueños Del Tanguero
Pintura: Ida O.






JANELA POÉTICA (VII)


UMA PARTE DO EU

Barbara Leite


Eu,
aprendiz de rocha,
vaga-lume
e machado

Dependente
de marco,
café e cigarro

Curiosa
por trilhas, trilhos
e sozinhos

Detentora de um sonho
que se perdeu no caminho.


(Barbara Leite é autora do livro “Caramelos e Almofadas”, lançado em fevereiro pela Editora Patuá. É baiana por opção, mineira por identificação e paulistana convicta. Formada em Administração de Empresas, encontrou na produção cultural uma forma de unir administração ao amor à arte. Organizadora do Politeama - Sarau Diverso. Foi publicada em antologias, entre elas a TOC 140, organizada pela Fliporto e Mundo Mundano e os 4 Cantos do Mundo. Diz ela que é a décima esposa de Vinícius de Moraes. Há de se acreditar. Cultiva amigos, manjericão e a paz. Há de se semear)




Tango con Cortes
Pintura: Ida O.



* Parte considerável da obra da artista plástica argentina Ida O. traz à tona a temática do Tango. De modo poético e intenso, seus personagens desfilam desejos e temores, num jogo de corpo que sabe também descerrar uma ironia sutil por sobre a existência. Seus atores ganham contornos plásticos especiais, muitos deles revestidos de uma presença fantasmagórica a tecer uma convivência paralela entre mundo físico e espiritual. Nessa dupla camada, a dança também pode revelar o combate que todos trazemos em vida, nossos enfrentamentos e contradições.

 
publicado por Fabrício Brandão
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